[Almeida Garrett]
Viagens na minha terra, romance de Almeida Garret, publicado em folhetins entre 1845 e 1846 na Revista Universal Lisbonense, considerado por alguns críticos como o ápice da prosa do seu autor, inaugura um gênero completamente novo na literatura portuguesa. Tendo como modelo as obras “Viagem à roda do meu quarto” de Xavier de Mauster e “Viagem sentimental” de Laurence Stern, configura-se como uma obra de dificílima classificação, pois reúne em suas páginas relatos de viagens, jornalísticos, ensaísta e ficcional. Toda essa miscelânea literária se deve à formação multiforme de Garrett, que segundo José Pereira Tavares, foi um homem erudito, versado em todas as literaturas. A narrativa inserida em Viagens na minha terra liga-se á tradição do “romance de aprendizagem” por estar impregnada de dados autobiográficos do autor. Segundo Massaud Moisés:
A figura de Georgina é claramente pautada nas reminiscências do tempo em que o autor esteve exilado em Warwick; a instabilidade emocional do protagonista, bem como seus ideais políticos, reflete o comportamento e a mundividência de Garrett. Por outro lado, agrega-se a intenção de meditar acerca da crise de valores que domina a cultura portuguesa. Nesse sentido as personagens se revestem de um valor simbólico: Carlos, alter ego do narrador, de personalidade instável, é incapaz de se relacionar, por inteiro, com o outro. Formado em um universo em crise de valores, abandona os ideais para assumir um comportamento adequado aos apelos do mundo: ser barão. Desta perspectiva, é o símbolo do Portugal contemporâneo. Frei Diniz, representa valores tradicionais destruídos pelo liberalismo. Joaninha, “a menina dos rouxinóis”, simboliza um Portugal ingênuo e telúrico que não tem mais condições de sobreviver ao progresso. Francisca, a avó, em sua cegueira, indica a imprudência com a qual o liberalismo foi assumido em Portugal: graças à falta de visão dos defensores do liberalismo, o país, impotente, assiste a sua destruição (p. 40).
Viagem na minha terra desenvolve-se em uma estrutura de novela contemporânea, e basicamente apresenta dois níveis narrativos: impressões de viagem, e a parte propriamente novelesca que trata do romance entre Carlos e joaninha. A linguagem usada pelo autor se aproxima muito da linguagem falada, sem, portanto, deixar de ser uma linguagem literária, o uso de digressões é constante, o próprio autor situa o leitor na narrativa, que se desenvolve em planos temporais diferentes: presente, passado recente e passado remoto, é comum na narrativa a analise psicológica das personagens, descrições físicas, como em: “os olhos de Joaninha eram verdes... não daquele verde descorado e traidor dos felinos, não não, eram verde-verde, puros e brilhantes como esmeraldas do mais subido quilate (p. 90); com pontadas de humor e muita ironia, sátiras aos clérigos e à sociedade:
“Nas cidades, aquela figuras graves e sérias com seus hábitos talares, quase todos pitorescos e alguns elegantes, atravessavam as multidões de macacos e bonecas de casaquinha esguia e chapelinho de alcatruz, que distinguem a peralvilha europeia, cortavam a monotonia do ridículo e davam fisionomia à população." (p. 92)
A obra é permeada de ferozes críticas à falta de espiritualismo e ao materialismo:
“andai ganha-pães, andai: reduzi tudo a cifras, todas as considerações desse mundo a equações de interesse corporal, vendei, agiotai. No fim de tudo isso, o que lucrou a espécie humana? Que mais umas poucas dúzias de homens ricos.” (p. 48).
Nem a própria literatura da época escapa às suas críticas: “a literatura é uma hipócrita, que tem religião nos versos, caridades nos romances, fé nos artigos de jornal - como os que dão esmolas para pôr no Diário...” (p. 49). Observando todas essas características, pode-se dizer que Garrett se utiliza de um diálogo crítico para apontar as causas que levaram Portugal a uma crise cada vez mais profunda. Embora reúna uma série de características de outras escolas literárias, cronologicamente, a obra, escrita em 1846, pertence ao Romantismo (1825-1865), e é considerada a obra mais importante dessa escola, sobre ela, Massaud Moisés escreve: “Instrumento para reflexão do seu autor, Viagens na minha terra, não só moderniza a prosa portuguesa, extirpando lhe os vícios retóricos de grandiloquência, como também traz em seu bojo a marca de uma lúcida consciência dos problemas que afligem seu país.” ( p. 40)
Referências:
GARRET, Almeida. Viagens na minha terra. 3° edição. Lisboa: Sá da Costa, 1974. MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa em perspectiva
Análise Crítica
Classificação da Obra: Romance Histórico
Ação principal: O autor resolve fazer uma viagem de Lisboa a Santarém de comboio, com a intenção de conhecer as ricas várzeas desse Ribatejo, e assim saudar do alto cume a mais histórica e monumental das vilas de Portugal. Paralelamente as paisagens visitadas o autor e narrador , presenteiam os presentes com um romance de amor.
Tipo de ação: Encadeada
Personagens Principais: Joaninha e Carlos, protagonistas da história de amor.
Personagens Secundárias: A avó de Joaninha – D. Francisca, Frei Dinis, Georgina, Júlia.
Narrador: Participante
Espaço principal: A história contada do romance de amor passa-se em 1932, e é narrada por Almeida Garrett, aos participantes da viagem. O mesmo Almeida é o cronista narrador.
Tempo Histórico: séc. IX
Tempo: A ação decorre durante uma viagem que Garrett faz de Lisboa a Santarém, além de discorrer sobre a paisagem, seus devaneios, o leva até este romance.
Resumo Crítico
“Viagens na Minha Terra” pode ser considerado um romance contemporâneo. Um livro difícil de enquadrar em género literário, pelo hibridismo que apresenta, além da viagem que de fato acontece paralelamente o autor conta um romance sentimental.
O conteúdo da obra, parte, como já dito, de um fato real, uma viagem que Garrett fez a Santarém e que teve o cuidado de situar no tempo. Além da viagem real, Garrett, faz nas suas divagações, várias viagens paralelas. Tantas e tais viagens, que numa delas o leva justamente, e pela mão de um companheiro de itinerário, a centrar-se no drama sentimental de Carlos e a “menina dos rouxinóis”- Joaninha.
O Romance resume-se, a intricada história, de uma velhinha (vó Francisca) com sua neta Joaninha. A menina-moça tem um primo, filho da única filha da avó, que já falecera. A moça tinha por si só a avó. Todas as semanas, Frei Dinis, vinha visitá-las, e alguma vez trazia notícias de Carlos, que já algum tempo, fazia parte do séquito de D. Pedro.
Só que a maneira como Frei Dinis falava de Carlos, dava para perceber algo, que só a idosa e Frei Dinis conhecia. Passara o ano de 1830, Carlos formara-se em Coimbra, e só então visitou a família, mas com muitas reticências em relação a avó e Frei Dinis. Carlos também pressentia que ele e a avó mantinham um segredo. Carlos, nas suas andanças, já tinha elegido uma fidalga para ele: D. Georgina, mulher de fino trato.No entanto a guerra civil progredia, eram meados de 1833. Os Constitucionalistas tinham tomado a Esquadra de D. Miguel, Lisboa estava em poder deles, e Carlos era um dos guerreiros da parte Realista.
Em 11 de Outubro, os soldados estão todos por volta de Lisboa, às tropas constitucionais vinham ao encalço das Realistas, e na batalha sangrenta, muitos ficaram feridos.
A casa de Joaninha foi tomada por soldados Realistas, que vigiavam a passagem dos Constitucionais.
E assim o Comboio chega ao Terreiro do Paço, e Garrett finaliza mais uma das suas melhores obras.
Símbolos e Imagens em Viagens na minha terra
Viagens na Minha Terra é uma obra que relata uma viagem feita por Almeida Garrett, seguindo o percurso de Lisboa a Santarém. É ao mesmo tempo verdadeira e simbólica, como afirma o próprio autor. Verdadeira porque de fato a viagem foi realizada, em 1843, a mando do político Passos de Manuel. É Simbólica, pois vai fazer uso da ficção como meio de representar as manifestações ocorridas em Portugal no século XIX. Trata-se de uma obra muito especial, considerada por muitos críticos, a mais importante prosa literária em Portugal, através desse livro Garrett procura denunciar o malogro do Liberalismo e o triunfo do Materialismo. Pode-se afirmar que a obra apresenta um caráter híbrido, visto que a narrativa manifesta características de relato jornalístico, leitura de viagens, novela sentimental, memória autobiográfica, ensaio sociológico-político, diário íntimo, prosa de ficção.
O autor procura descrever com muita maestria a viagem sob diversos aspectos: geográfico, cultural, histórico e político. Em Viagens na Minha Terra Garrett procura estabelecer uma conexão entre passado, presente e futuro, utilizando-se das memórias e das imagens. Estas vão ser corporificadas através de seus personagens principais: Carlos, Frei Dinis, Joaninha, D. Francisca e Georgina. Cada um deles, configurando um aspecto-símbolo da história de Portugal. O século XX foi um período difícil para Portugal uma vez que evidencia a crise de identidade portuguesa, resultado dos vários acontecimentos como a Guerra Civil, a Restauração, o combate entre absolutistas e liberalistas.
Personagens de Viagens na Minha Terra
As personagens de "Viagens na Minha Terra" funcionam como uma visão simbólica de Portugal, buscando-se através disso as causas da decadência do Império Português. O final do drama, que culmina na morte de Joaninha e na fuga de Carlos para tornar-se barão, representa a própria crise de valores em que o apego à materialidade e ao imediatismo acaba por fechar um ciclo de mutações de caráter duvidoso e instável.
Temos, então, as seguintes personagens e suas possíveis interpretações simbólicas dentro da obra:
Carlos: é um homem instável que não consegue se decidir sobre suas relações amorosas, podendo ser ligado às características biográficas do próprio Almeida Garrett.
Georgina: namorada inglesa de Carlos, é a estrangeira de visão ingênua, que escolhe a reclusão religiosa como justificativa para não participar dos dilemas e conflitos históricos que motivaram sua decepção amorosa.
Joaninha: prima e amada de Carlos. Meiga e singela, é a típica heroína campestre do Romantismo. Simboliza uma visão ingênua de Portugal, que não se sustenta diante da realidade histórica.
D. Francisca: velha cega avó de Joaninha. Mostra-nos a imprudência e a falta de planejamento com que Portugal se colocava no governo dos liberalistas, levando a nação à decadência.
Frei Dinis: é a própria tradição calcada num passado histórico glorioso, que no entanto, não é mais capaz de justificar-se sem uma revisão de valores e de perspectivas.
As personagens e suas representações
No percurso da viagem a Santarém — um dos núcleos importantes da obra — o autor registra vários fatos que, incorporados pouco a pouco vão dando forma ao romance. A viagem a Santarém é a imagem do “livro de pedra” em que Garrett busca entremear as partes da história, fazendo alusão a três momentos: o retorno ao passado remoto — período em que Portugal ostentava suas grandezas e atos heroicos; passado recente no qual o autor-narrador, através do relato da história de Joaninha dos Rouxinóis procura evidenciar os fatos histórico-políticos que levaram à degradação material dos monumentos da nação às ruínas e, finalmente o presente que é explicado através da reconstituição dos momentos pretéritos. Em relação aos personagens, comecemos pela história da Menina dos Rouxinóis que é a metáfora da história de Portugal, narrada sob a forma de novela sentimental que envolve Carlos e Joaninha e onde Garrett introduz princípios relacionados ao Absolutismo X Liberalismo e Materialismo X Espiritualismo, fazendo referência a Sancho Pança e D. Quixote, prefigurando a trajetória comportamental de Carlos e Frei Dinis a fim de explicar os fatos que compuseram a história de Portugal.
Joaninha não era bela, mas era pura, ingênua, gentil, “o ideal de espiritualidade”, a possuidora dos olhos “verdes-verdes, puros e brilhantes como esmeraldas.Os olhos de Joaninha têm uma simbologia muito grande, vão representar a opulência, o destino agrícola e marítimo de Portugal em seu momento áureo. Talvez por isso, ela tenha um lugar especial no coração de Carlos.
Joaninha simboliza o ideal moral positivo, é a imagem do equilíbrio, do sonho, da nostalgia; é o elo, a memória — fator de ligação entre o passado glorioso e o presente catastrófico. Ela é a configuração da monumentalidade histórica de Portugal que insiste em permanecer viva, pelo menos na memória, entremeando o passado remoto com o passado recente a fim de encontrar explicações para a falência do Espiritualismo e da Restauração. A Menina dos Rouxinóis representa o Portugal telúrico que se conservava resistente, Assim como Joaninha, Georgina representa o ideal moral positivo. Mesmo amando Carlos, ela percebe que o seu coração não lhe pertence, está dividido entre ela e Joaninha, por isso, resolve deixá-lo, talvez pressentindo que ele não fosse capaz de fazer uma escolha entre elas. Apesar de Joaninha supostamente se constituir como sua rival, elas têm uma relação “civilizada”, compreendem-se e respeitam-se profundamente, pois são vítimas de uma mesma situação. Elas representam a essência do bem num mundo que não tem mais lugar para elas, portanto, perdem o seu valor no mundo materializado.
Outra figura importante na obra é Carlos que, juntamente com Frei Dinis revelam-se as metáforas que evidenciam os polos antagônicos da narrativa. Neles está representada a marcha do progresso social da nação portuguesa, do Materialismo Absolutista ao Espiritualismo (ideal liberalista burguês). Carlos, em sua primeira fase, quando ainda morava com a avó Francisca e Joaninha sua prima, mostra-se um jovem defensor de ideias liberalistas, o D. Quixote. Após descobrir o segredo que macula a honra da família, Carlos resolve ir embora. Posteriormente alista-se no exército liberal e, por conta da Guerra Civil regressa ao seu país, deixando sua noiva Georgina na Inglaterra. No retorno, encontra Joaninha, já moça feita e apaixonam-se imediatamente Após descobrir que é filho de Frei Dinis, Carlos renuncia à família, aos “amores” e aos ideais. Vitimado por uma crise de valores que o obriga a optar por assumir-se Sancho Pança ou D. Quixote (materialista ou espiritualista), um verdadeiro combate interior, deixa-se seduzir então pelos apelos do Materialismo — mascarado pelo Liberalismo, pois este, já havia se afastado dos princípios primitivos.
Dessa forma, Carlos trai a si próprio, aos seus valores e decide então incorporar a figura de Sancho, tornando-se barão — símbolo do Portugal contemporâneo que rejeita a estagnação e os princípios cristãos. Essa alternância tão contraditória (Quixote/Sancho) de personalidade e ideário determina o progresso, “é a crônica do passado, a história do presente, o programa do futuro” (cap. II); o Materialismo Absolutista X Liberalismo que explicam a situação histórica, cultural e política de Portugal no século XIX.
Carlos já não é mais o mesmo (ou já o era?), revela uma personalidade ainda mais instável; mostra-se um indivíduo multifacetado e oscilante, o qual não consegue conciliar seu idealismo com as ofertas que lhes são oferecidas pelo Materialismo, tão pouco se decidir por uma das duas mulheres que circundam sua vida, ou melhor, ele nunca soube fazê-lo, nunca soube amar verdadeiramente nenhuma das mulheres que cruzaram seu destino, sempre ficou dividido entre elas. Essa impotência sentimental (muito comum no Romantismo) o levou a abandonar as duas: Georgina e Joaninha, talvez como uma forma de fuga para não enfrentar seus problemas. Num determinado momento Carlos deseja morrer e parece-lhe que essa seja a solução mais adequada, visto que ele torna-se um indivíduo perseguido pelo passado cheio de contradições. Além disso, não consegue aceitar o fato de ser filho de Frei Dinis.
Apesar de perdoar-lhe, não consegue conviver com a realidade, pois ela o assusta. Então foge, desencadeando um processo que se pode denominar de mortes simbólicas na obra: Carlos morre ao tornar-se barão — morte de ideais, da alma, do amor. Essa inconstância aponta para uma falta de autoafirmação, de uma personalidade bem estruturada. Tal oscilação não diz respeito apenas ao aspecto amoroso, contudo, perpassa por outras áreas de sua vida (tal qual Garrett). A decisão de tornar-se barão, certamente vem consolidar a pretensão de superar o fracasso amoroso, ou do próprio eu-errante, instável.
Além da morte de Carlos há também a de Joaninha que morre para a razão ao enlouquecer; Georgina morre para a vida ao converter-se ao Catolicismo, pois não aceitava ser de outro homem que não fosse Carlos; D. Francisca (que já estava semimorta), também louca, morre para o mundo, está apenas à espera da “dissolução do corpo”, assim como Frei Dinis que aguarda o momento em que Deus o leve. O rompimento entre Carlos e Joaninha é uma insígnia da vitória do Liberalismo, resultado de lastimáveis perdas e equívocos, redundando no malogro mencionado por Garret. Tal malogro é a imagem dos resultados da Guerra Civil que, de 1828 a 1834, desencadeou um conflito entre os irmãos D. Pedro IV (para nós, D. Pedro I) e D. Miguel, postulantes ao trono português.
A inserção de Carlos na vida pública que estava se descortinando, simboliza o início de uma nova história da nação portuguesa. O Carlos barão representa o Portugal contemporâneo, a ruptura com os valores tradicionais e a adesão aos valores instituídos, resultantes do momento que Portugal estava vivendo, advindos do processo de modernização do país e da Europa como um todo.Portugal está em ruínas, urge a formulação de um projeto que mude esse quadro e que deveria ser realizado pela elite esclarecida, mas esta, sintetizada em Carlos, não está preparada para o desempenho da função para a qual foi convocada. Como a obra possui (também) caráter autobiográfico, convém ressaltar a atuação ativa de Garrett no governo liberal triunfante. Ele, de militante do Liberalismo primitivo, acaba rendendo-se ao Materialismo mascarado sob a forma de um Liberalismo uma vez que este se adequava aos moldes capitalistas que privilegiava uma classe que centralizava o poder em detrimento da vontade do povo. Assim como Carlos, ele não conseguiu realizar a façanha de mudar o rumo da situação. Contrapondo aos valores ditados pela nova ordem que ora se implantava no país, tem-se outro personagem do romance: Frei Dinis, cuja alternância de sua personalidade ocorre de forma oposta a de Carlos, denota, pois, as transformações pelas quais passou Portugal.
Antes de tornar-se frade era materialista (Sancho Pança), preso às paixões carnais, vindo a espiritualizar-se depois (D. Quixote), transformando-se em frade, como resultado do remorso pelos crimes que provocara na família de D. Francisca. Após inserir-se na vida religiosa, Frei Dinis passa a assumir outra condição, antagonizando-se a Carlos que de espiritualizado passa a materializar-se. Ao tornar-se frei, adquire efígie de um indivíduo sisudo, triste, hermético em seu mundo: Frei Dinis representa a imagem da Igreja com todo o seu autoritarismo, rigidez, inflexibilidade diante de algumas situações que se lhe “surgia”; estava sempre disposto a seguir os dogmas religiosos e rejeitar todo princípio que não estivesse de acordo com o rigor do Catolicismo. Para todo ato pecaminoso, havia uma punição. Ele próprio se punia pelo ato cometido, ademais, entrou para vida religiosa como forma de penitência visando se redimir dos pecados através do exercício do sacerdócio. Tornou-se um “sobrevivente “à espera da morte, quando finalmente iria expurgar-se totalmente do seu pecado hediondo”.
À proporção que as ideias liberais iam ganhando força, a Igreja tornava-se impotente, pois o crescimento do Liberalismo — que já não defendia uma Constituição política estabelecida sobre as bases populares, mas havia sido “contaminado” pelas influências francesa e inglesa — implicava em perda de poder do clero e da nobreza. Autoridade bastante influente, Frei Dinis controlava Joaninha e D. Francisca, só não conseguia exercer domínio sobre Carlos. Não era possível conciliação entre pai e filho — o materializado com o espiritualizado, Quixote e Sancho, Igreja e Estado. Tal relação evidencia o enfraquecimento da Igreja nas decisões ligadas ao Estado. O Liberalismo adquiriu outras nuances, afastando-se, portanto, do Cristianismo, contribuindo dessa forma para o processo de materialização. O mesmo ocorre quando Carlos despreza os vínculos familiares com Frei Dinis e torna-se barão.As relações simbólicas na obra em estudo não param por aí. Se o Frei era a representação da Igreja, D. Francisca, a avó de Joaninha era a personificação do Portugal subserviente, passivo que sempre se dobrava as ordens da Igreja, uma vez que era esta que sempre estabelecia os ditames.
A descrição da imagem da avó Francisca é um demonstrativo da tristeza, resignação, impotência. O seu olhar era vago é a reminiscência da dor, que “ao final não vê, não ouve, não fala, ‘morta de alma para tudo’ , assim como Portugal, no corpo agonizante do país, o derradeiro suspiro do espírito. A cegueira da velha não era apenas física, mas também faz referência à alma. Ela não tinha expectativas; as esperanças já se lhe faltavam há muito; a morbidez lhe era uma característica peculiar. Tal imagem é um indicativo de como Portugal estava como que imerso num invólucro, numa estagnação, num passado morto que Garrett intencionava ressuscitar através das viagens memoráveis.
D. Francisca em sua cegueira é a manifestação da imprudência com que o Liberalismo foi assumido em Portugal. Isso evidencia a falta de visão e o despreparo dos defensores do Liberalismo, uma vez que não havia a devida articulação para coloca-lo em prática naquele momento. “O país, impotente, assiste a sua destruição.” Todos esses símbolos e imagens descritos por Garrett não são para mostrar apenas a decadência dos sonhos e dos ideais de mudanças em Portugal. A sua viagem (simbólica e real) é a tentativa de além de retratar não só os motivos pelos quais o projeto de implantação do Liberalismo fracassou, mas, sobretudo, fazer um mapeamento da história de Portugal dentro de seus vários aspectos, já citados anteriormente com intenção de resgatar através da memória um passado glorioso, para explicar o presente decadente a fim de projetar um futuro promissor. E isso ele o faz dentro da mais pura liberdade de criação romântica, mesmo afirmando não ser adepto dos padrões Romantismo.