Coração Roubado é um livro de crônicas. Você sabe o que é uma crônica? O autor, no prefácio, ajuda você a entender um pouco melhor esse gêne... Pressione TAB e depois F para ouvir o conteúdo principal desta tela. Para pular essa leitura pressione TAB e depois F. Para pausar a leitura pressione D (primeira tecla à esquerda do F), para continuar pressione G (primeira tecla à direita do F). Para ir ao menu principal pressione a tecla J e depois F. Pressione F para ouvir essa instrução novamente.
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O Coração Roubado e outras Crônicas

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Sobre o Autor

Marcos Rey, pseudônimo de Edmundo Donato, nasceu e morreu em São Paulo (1925‐ 1999), cidade que sempre foi cenário de suas crônicas, contos, novelas e romances. Sua carreira, repleta da glória, foi marcada por um drama pessoal dos mais violentos, que permaneceu oculto até a sua morte. Marcos Rey era portador de hanseníase, doença conhecida até meados do século XX como lepra e que desde os tempos bíblicos carrega o estigma de maldição.

A partir dos anos 30, a hanseníase passou a ser combatida com ferocidade pelas autoridades sanitárias paulistas, que internavam os doentes à força em sinistros leprosários.

Depois de uma segunda denúncia anônima, em 1941, o jovem Edmundo, que contraíra a doença aos dez ou doze anos, foi levado por uma ambulância enquanto jogava bilhar, em um bar na Praça Marechal Deodoro, no Centro de São Paulo. Começava um pesadelo que duraria seis longos anos, até a sua última fuga do sanatório, em 1945.

Sobre a obra

Coração Roubado é um livro de crônicas. Você sabe o que é uma crônica? O autor, no prefácio, ajuda você a entender um pouco melhor esse gênero literário tão gostoso de ler e cultivado no Brasil por excelentes escritores como Machado de Assis (1839 ‐1908), Cecília Meireles (1901‐1964), Rubem Braga (1913 ‐1990), Fernando Sabino (1923 ‐2004), Ignácio de Loyola Brandão (1936), Moacyr Scliar (1937) e tantos outros...

Vamos ler um trechinho do prefácio.

O que é mesmo uma crônica? Muitos supõem, também erradamente, que a crônica, ramo econômico das letras, sem espaço para alinhavar e aprofundar conclusões, nem tamanho para conferir finais apoteóticos, não passa de malabarismo de entreato, cortina ou número para entretenimento ligeiro, show de bolso, sem grandiosidade. Um quase ‐ literatura de consumo dietético. Mas a crônica é mais, muito mais que isso, mesmo as que não têm fim nem começo.
Escritas de maneira inteligente e instigante, as 26 crônicas de Marcos Rey apresentam uma série de tipos inesquecíveis, vivendo situações as mais diversas. Nas páginas de Coração roubado, você encontrará cenas hilariantes, absurdas, constrangedoras, delicadas... presentes no dia‐a‐dia de qualquer pessoa, em qualquer lugar.

Marcos Rey agrupou as crônicas em três subtítulos:

1 - Situações embaraçosas

O coração roubado

Narrada em primeira pessoa, esta crônica relembra o tempo da infância do autor: o momento da conclusão do antigo curso primário. O autor ganhara um livro do pai (O coração, do escritor italiano Edmondo de Amicis), um best‐seller infanto‐juvenil. Na festa de formatura o seu livro desapareceu e ele sofreu uma grande decepção. Encontrou‐o sob a pasta escolar de Plínio, o aluno mais comportado da escola. Com vergonha de denunciá‐lo, pegou o livro de volta sem dizer nada ao ladrão. Mas, a partir daquele dia, perdeu a fé nos seres humanos e passou a vida toda dando o exemplo de Plínio para demonstrar a corrupção humana. Um dia, caíram alguns livros de sua estante, entre eles, o famoso O coração, de Amicis... Procurou a dedicatória de seu saudoso pai e... surpresa! Encontrou a dedicatória do pai de Plínio.

Gnomos na gaveta

Misturando ficção e realidade o narrador nos conta que atravessava um período de dificuldades financeiras quando a mulher lhe deu a ideia de escrever sobre coisas esotéricas. Afirmava ela, que o povo estava cansado da dura realidade da vida e que escrever sobre gnomos poderia lhes dar um bom dinheiro. Ele afirmou que era materialista e que tudo isso era besteira, ilusão, piração. Então, a mulher insistiu: escreva contra os duendes. Nosso problema é financeiro, não importa se o livro é contra ou a favor.

Ele aceitou a sugestão da esposa e ligou para o editor, este lhe deu sinal verde... pode escrever. O título saiu fácil: NÃO ACREDITO EM GNOMOS. E DAÍ? Até adiantamento em cheque ele recebeu. Quando começou a escrever, não saía nada além do título... e o pior, um homenzinho de cinco centímetros não para de dar voltas de bicicleta ao redor de sua máquina de escrever: “...Olha para mim gozador e, com a mão direita, faz gestos obscenos... Quer me enlouquecer. Uso o aspirador.”

A última entrevista

Um homem sonha em ser um grande repórter, daqueles que fazem entrevistas extraordinárias e perigosas. Imagina entrevistas com marcianos, Santos Dumont, Van Gogh... Acaba entrevistando um perigoso fugitivo de penitenciária que se distrai e é preso pela polícia. Um dia, vai entrevistar um maluco que vai voar num avião até a gasolina acabar. Em terra ele pergunta: O que sente um aviador que sabe que vai morrer quando acabar a gasolina? Depois, entra no avião e decola com o suicida.

Ganhou o primeiro prêmio de reportagem do ano. Seu pai recebeu o troféu por ele. Beleza. Todo banhado a ouro.”

Ah! Ah! Ah!

Esta crônica tece reflexões sobre o RISO. Desde o mais simples até a risada mais intensa. “O humor machadiano, por exemplo, é tão imaterial como o perfume. Exige refinamento do leitor.. Há, na outra ponta, o riso manual, obtido com os dedos através de cócegas. Com habilidade se faz até o conde Drácula dar risada. O riso pode também ser forçado artificialmente por processo mecânico, como se fazia nos circos e parques de diversão, com o antiquíssimo Disco das Gargalhadas. Criava‐se um clima postiço de alegria, com efeito mágico sobre os idiotas”. (p. 32)

Depois, o narrador passa a discorrer sobre o riso embaraçoso, aquele que não deveria ocorrer. O riso durante um velório, durante o casamento, dentro de um elevador... Por fim, a sua própria experiência: fora dar uma palestra sobre Contos. A noite chuvosa, pouca gente escutando... começou a rir da situação e de si mesmo... a plateia foi contagiada, todos começam a rir. Ao final, o prefeito lhe parabeniza:

Volte sempre. Confesso não ter entendido muita coisa, mas nunca se riu tanto por aqui. O senhor é um show!” (p. 33)

A missivista suicida

O assunto é o ofício de cronista. O autor relembra um tempo em que produziu crônicas “melosas” para um programa de rádio, nada especial, tanto é que rasgava todas ao final do programa.

De repente, começou a receber cartas esquisitas: “Diga para o Luís voltar já para casa senão tomo veneno. Ele ouve o programa. Assinado: Julinha da Bela Vista. Letra tremida, papel umedecido de lágrimas.” (p. 39)

Emocionado, o cronista decidiu escrever uma crônica para o Luís. Liga um Luís: “... tudo bem, estou voltando pra casa”. Alívio do cronista. Liga outro Luís: “... já estou chamando um táxi para voltar aos braços da Julinha.” O cronista sente uma sensação de dever cumprido. Liga mais um Luís: “... não adianta ficar escrevendo besteiras, por mim ela pode tomar um tonel de veneno... Não estou nem aí.” O cronista fica perplexo: e agora, qual é o Luís da Julinha?

Outro momento hilário: Alguém escreveu uma carta dizendo chamar‐se Leão, que era o ser mais solitário do mundo, que ligassem pra ele. Comovido, o cronista fez o que não era normal no programa. Deu o telefone do tal Leão. Resultado, o pessoal do zoológico ligou revoltado com tantos telefonemas para falar com o leão.

2 - Flashes da vida moderna

Ele comprou tudo que Van Gogh pintou

Crônica divertida lembra o filme Efeito Borboleta, pois trata da volta no tempo.

Um cientista inventara uma máquina para voltar no tempo, mas não divulgara nada. Tinha uma ideia: voltar no tempo e comprar todos os quadros de Van Gogh. Depois voltaria e venderia todos ficando milionário. Começou a fazer testes. Botou uma garrafa de vinho na máquina e atrasou o relógio em um ano. Resultado: voltou um cacho de uvas; experiência 2: colocou uma galinha na máquina... quando a máquina voltou, lá estava um ovo. Pensou em se a máquina funcionava com seres humanos. Convenceu um bêbado (Gera) a entrar na geringonça e atrasou o relógio 50 anos... Gera voltou cantando marchinhas de 50 anos atrás. Deu tudo certo.

Comprou francos velhos (moeda do tempo de Van Gogh) e embarcou na máquina. Encontrou Van Gogh, pobre, desiludido, sem conseguir vender nenhum dos seus quadros. Comprou todos e ainda deu conselhos ao pintor: “Desista de pintar, moço, não nasceu para isso, em seu lugar compraria ações do novo invento, o telefone. Vai ser o maior estouro.” (p. 48)

Ao regressar ao seu tempo, o cientista colocou os quadros à venda... SURPRESA! Ninguém queria os quadros, ninguém conhecia Van Gogh... ao mexer no passado, ele apagara o famoso pintor da história. O que restara era um tal de Van Gogh que ficara rico como acionista da Companhia telefônica.

Essa mocidade de hoje

Reflexão irônica sobre a preocupação dos pais de antigamente e a dos pais de hoje. A crônica é datada como se fosse de 1893, o que é, evidentemente, uma estratégia do cronista para nos surpreender.

Em uma família, os pais estão preocupados. O filho está viciado em cheirar... Quando pensamos em nossos dias, vem à tona: COCAÍNA! Naquela época, o perigo era cheirar rapé, e a consequência era meramente social, já que os viciados em rapé espirravam muito. Por causa disso, o jovem perdia empregos e casamento.

O segundo filho saia no meio da madrugada e os pais, preocupados investigam. O jovem fazia serenatas para as namoradas. O terceiro viciou‐se numa tal de lanterna mágica, os pais ficam alucinados. Era apenas um brinquedo que tentava imitar a magia do cinema e que fez muito sucesso entre as crianças do final do século XIX.

E os pais preocupados dizem: “Este fim de século ameaça destruir nossos jovens.” (p. 53)

Marketing oportunista

Crônica que nos chama a atenção para o oportunismo de algumas pessoas. A história acontece na década de 90, tempo em que os dinossauros e os duendes estão na moda. A Xuxa até chegou a ver alguns, lembra?

O narrador se espanta pela facilidade com que o homem daquele tempo caminha pelos extremos. OU é o duende (minúsculo) ou o dinossauro (gigantesco). Um amigo pergunta se ele está escrevendo alguma coisa e ele diz que está escrevendo uma história que envolve um triângulo amoroso, o amigo não gosta:

“− A ideia é velha. Meta um dinossauro carnívoro, feroz, perseguindo esses três tarados.
− Como posso fazer isso? O romance se passa nos tempos de hoje, entendeu?
− Não faz mal, ponha o dinossauro assim mesmo.

− Ora, é uma história urbana, não acontece em nenhuma floresta desconhecida.
− Melhor ainda! Já imaginou o tal dinossauro no viaduto do chá, na hora do rush, pisando nos carros, derrubando postes, engolindo marreteiros?” (p. 57‐58)

O cronista vai para casa impressionado com o mau gosto. Comenta com a mulher esperando uma risada. Ela diz: dá dinheiro...

De noite, o cronista sonha com dinossauros. Um senador que fez propaganda no pescoço de um dinossauro, Iguanodontes andando na rua e sendo alugados... e algumas pessoas defendendo os dinossauros, preocupados com a sua extinção. De repente ele vê um enorme Tiranossauro Rex amarrado e pergunta por que o imobilizaram daquela maneira. Resposta dos defensores de dinossauros: foi imobilizado assim como marketing sensacionalista de um romance que tratava de um triângulo amoroso. Pergunta se a história fez sucesso. E a resposta é: fez, o inescrupuloso escritor ganhou milhões.

Nesse momento o escritor acorda, vai à cozinha e encontra a mulher somando as contas a pagar e diz:

“− Sabe de uma coisa querida? Aquela ideia do dinossauro no viaduto é coisa de louco, sim, mas quem não é hoje em dia?” (p. 60)

3 - Figurinhas carimbadas

A primeira figurinha carimbada é o próprio autor. Nasceu pobre, mas seu pai disse que nascera na cidade deserta (São Paulo). Devido ao seu anonimato, brinca com o recenseador, pedindo que ele apareça mais vezes. O homem do censo faz a gente lembrar quem é.

Nas primeiras décadas da vida, não fez nada e aí, por falta de tempo e cansado do esforço de não fazer nada, começou a escrever. Escreveu um romance imenso, chamado Ulisses, mas descobriu que havia um com o mesmo nome e com a mesma história. Atribui isso às coincidências. Começou a escrever sobre Paris, mas lhe deram uma ideia: fale sobre São Paulo, é mais perto e, quando chove, é só ficar olhando da janela.

Fez um filme sem sucesso nenhum, e brinca: “Se tivéssemos vendido saídas, no lugar de entradas, teria ficado rico.” (p. 78)

Alga que fez anúncios e brinca com a história de Van Gogh (pintor que cortou a orelha); O anúncio era de cola tudo, portanto fez a orelha de Van Gogh sendo colada ao contrário com os dizeres: “Agora não tem mais jeito, ruivo!”.

Na televisão também não deu certo. O primeiro livro foi um fracasso, só não desistiu por insistência da mãe. Ao acabar de escrever o vigésimo, tinha chegado ao completo anonimato.
Afirma que, atualmente, está escrevendo um livro de memórias e aconselha a que ninguém perca. Começa assim: “No mês em que nasci São Paulo estava coberta de neve.” E para que ninguém duvide, não coloquei o ano.

Adão Flores, o detetive

Adão é um detetive diferente. Misto de empresário de cantores e mulheres para casas noturnas e detetive, Adão tem seu escritório no próprio carro (um Corcel 69) que fica estacionado em frente a boate. Sua secretária (Maralice) trabalha no banco traseiro, com uma máquina de escrever sobre as pernas.

Resolvera ser detetive quando um pai aflito lhe pedira que localizasse suas duas filhas gêmeas, loiríssimas, que sonhavam em cantar em dupla. Ele as havia contratado, pintava elas com a cor negra e as apresentava como “as irmãs fulô”. Quando a plateia cansava, retornava‐lhes a cor original e elas cantavam como uma dupla de loiras. Também tivera um caso com uma delas antes de se pintarem e com a outra depois de pintada. Os pais choram com a apresentação das filhas.

Adão Flores era gordo (120 quilos, a maior parte na barriga) e Maralice, sua secretária, magra (45 quilos). Um dia um homem lhe procurou para encontrar um cantor que lhe dera um cano. Adão conhecia todos. Era um tal de Ramon Diaz.. Adão o prendeu, mas antes lhe pediu que cantasse o famoso bolero Sabra Dios.

Gente que vai à feira

O autor começa narrando a mistura de personagens que frequentam às feiras populares. O rico, o pobre, e, às vezes, até mesmo gente famosa. Ele não gosta de feira, lembra do tempo de criança, quando era obrigado a carregar as compras. Sua esposa adora. Um dia uma menina gorducha lhe pediu um autógrafo. Ficou todo feliz, havia acabado de publicar um livro e era bom ser reconhecido. Juntou gente, e ele cada vez mais feliz... até que uma senhora da fila perguntou: quem é? E a outra informou:

“− Não conhece? É o doutor Lilico da novela das 7, o pai da moça... Vai deixar que eles se casem no final? Conte pra gente, conte.” (p. 91)

Procurando Telma Ternura

Um jovem repórter está procurando um assunto que emocione os leitores. Lá está, nos arquivos: Telma ternura, a ex‐rainha do sexo em São Paulo, a mãe do espetáculo pornô, sumira. Ninguém sabia do seu paradeiro. Ninguém sabia nem do seu verdadeiro nome. Procurou em todos os lugares e... NADA. Um dia ligaram para a redação e deram o endereço.

Encontrou uma velhinha magra (40 quilos), ela não dava entrevistas sem receber um bom dinheiro. Desesperado para não perder o furo de reportagem, ele vendeu a eletrola, o casaco, obras de Eça de Queirós.. até um papagaio. Pagou e a velhinha começou a entrevista. Não tinha nenhuma vergonha, contava tudo, figurões e famosos com quem tivera casos... tudo. O repórter pediu uma foto e ela provocou: com roupa ou sem roupa?

Terminada a entrevista, o repórter corre para o jornal, está bem feliz e ansioso. Quando mostra o trabalho ao editor, este começa a rir e informa: Telma morreu há 20 anos. Alguém te enganou. Ele corre atrás da velhinha que o enganara, mas, chegando lá, não encontra ninguém, ela já se mudara. Informam que a velha era uma grande inventora de histórias e que gostava de se passar por uma ex‐atriz: Greta Garbo.

Envergonhado, ele sabe que todos ali já sabem que caíra nas mentiras da velhinha.

Os furtos do furtado

Furtado era um home sério, respeitado, sempre bem vestido. Todos o achavam careta. Mas o cronista o conhecia desde a infância. Um fino ladrão era isso que o Furtado era.

Estava sempre de olho nos pertences alheios. Jogava o boné e, junto já vinha o compasso. O cronista avisava: Furtado, devolva, eu vi você roubar. E ele corrigia: Roubo é quando se usa violência. Eu apenas furto.

Quando o autor ameaçava denunciar à professora ele dizia: Não faça isso que eu devolvo. Mas não era o compasso que queria devolver, já era a caixa de lápis de cor do denunciante que ele roubara e que devolveria em troca de seu silêncio.

Cresceu dessa maneira, sempre com modos finos e sempre roubando. Já adulto, não resistia ao desejo de contar ao amigo de infância seus furtos. Na feira, no supermercado, nas livrarias... e ainda pedia: Cuidado! Não vá um dia falar de mim em sua crônica.

Fonte: <http://www.colegiomotiva.com.br>