A Ditadura e suas variantes
A história da humanidade tem sido uma confirmação reiterada do acerto da advertência do eminente político e historiador inglês Lord Acton, segundo a qual “o poder tende a corromper e o poder absoluto tende a corromper absolutamente”. Em tal sentido pode-se também acrescentar que é igualmente acertada a conclusão de que todas as ditaduras se parecem. Mudam as motivações ou alegações, para implantação de um sistema ditatorial, mas as variantes são de pormenor ou relativas às técnicas de atuação, pois na essência não há diferenças significativas.
Além disso, é oportuno acrescentar que ditadura é uma expressão ampla, que abrange muitas modalidades de comandos políticos arbitrários, que freqüentemente procuram mascarar sua verdadeira natureza apresentando uma fachada nobre ou humanitária e adotando uma auto-denominação que sugere uma ação salvadora e um compromisso com valores e direitos fundamentais da humanidade.
Acrescente-se, ainda, que não têm sido raros os governos ditatoriais comandados de fora do país, tendo nos postos formais de chefia e governo meros fantoches, que para satisfação de suas ambições pessoais ou movidos pela intolerância entregam a alma de seu povo e fazem o serviço sujo determinado por um comando localizado no exterior.
A Ditadura brasileira de 1964
A ditadura militar foi implantada no Brasil em 1º de Abril de 1964, com substancial apoio de pessoas e entidades da sociedade civil, de órgãos representativos do poder econômico nacional, de uma parte considerável dos superiores da hierarquia católica e ainda de importantes órgãos de comunicação de massa que se proclamam tradicionalmente liberais. O sistema ditatorial, que durou de 1964 a 1986, teve diversas etapas e apresentou algumas características peculiares, como o fato de que o poder ditatorial não se apoiava num líder carismático, mas foi imposto e exercido sempre por grupos dominantes. A par disso, por motivo de divergências entre diferentes grupos de militares, mas também tentando dar a aparência de democracia, sucederam-se no comando ostensivo do governo ditatorial cinco generais de exército, essencialmente ditadores mas com estilos diferentes sob certos aspectos, tendo havido variações quanto à intensidade das violências e à linguagem.
Com relação às origens do golpe de Estado que resultou na implantação da ditadura, podem-se mencionar fatores internos da realidade brasileira, como o temor das elites tradicionais de perder seu patrimônio e seus privilégios, mas a par disso foi muito importante a ingerência dos Estados Unidos na vida política, econômica e social brasileira. Como está fartamente documentado, inclusive por registros feitos por jornais da época, noticiando como simples rotina alguns fatos que observadores atentos das práticas políticas e conhecedores da Histórias já denunciavam como perigosos, a participação direta dos Estados Unidos foi decisiva para a implantação da ditadura.
Na realidade, o golpe militar de 1964 foi dado com substancial apoio – alguns dizem que por inspiração - dos Estados Unidos, por meio de suas forças armadas, de suas organizações especializadas em espionagem e ações subversivas subterrâneas, bem como por sua diplomacia, que ostensivamente pregou, articulou e apoiou a ditadura. Grandes empresas estadunidenses tinham interesse em apoderar-se de grandes reservas de minério de ferro existentes no Brasil especialmente no Estado de Minas Gerais.
Ao mesmo tempo, crescia no Brasil um sentimento nacionalista, sendo bem expressiva dessa linha de pensamento a iniciativa do governador do Estado do Rio Grande do Sul, decretando a nacionalização de empresas produtoras e distribuidoras de energia elétrica. Esse fato foi explorado com escândalo pelos grandes jornais ligados ao poder econômico e simpatizantes fanáticos do capitalismo estadunidense. Tudo isso acontecia no Brasil pouco depois da revolução cubana, que despertou em muitos o temor da expansão das idéias socialistas em toda a América Latina.
Poucos anos antes do golpe militar esteve no Brasil uma missão militar enviada pelo National War College dos Estados Unidos, trabalhando junto com militares brasileiros para a implantação de um programa de militarização da sociedade, denominado “doutrina da segurança nacional”. Paralelamente, o embaixador dos Estados Unidos no Brasil desenvolvia intensa atividade em vários pontos do território brasileiro, pregando a idéia de uma aliança de todo o mundo acidental, sob liderança dos Estados Unidos, para a defesa do “mundo livre” face à ameaça comunista. Esse embaixador era da intimidade de altas autoridades brasileiras e transmitia informações ao Presidente dos Estados Unidos sobre os planos secretos de defesa do Brasil, o que deixa muito evidente seu envolvimento com as chefias militares e com a diplomacia brasileira.
Quanto aos fatores internos que inspiraram e facilitaram a implantação da ditadura em 1964, é preciso registrar que uma parte considerável do povo brasileiro apoiou à substituição do Presidente da República, que era João Goulart, mas pensando na substituição por meios legais e pacíficos previstos na Constituição, sem imaginar que a destituição do Presidente abria o caminho para uma ditadura. Na realidade, houve o apoio de lideranças civis, inclusive empresariais e religiosas, influenciadas por uma pregação terrorista feita pela imprensa, mas também numa conjugação de ambições, intolerância e ignorância, que muitas vezes se confunde com a ingenuidade e é fácil de ser manipulada.
Os fatos que vieram logo em seguida à deposição do Presidente constitucional João Goulart, que no dia 1º de Abril de 1964 teve de buscar refúgio fora do Brasil para não ser preso, deixaram evidente, mesmo para os mais ingênuos e menos informados, que se tinha implantado no Brasil, pura e simplesmente, uma ditadura, um poder arbitrário, com todo o cortejo de violências e corrupção que fazem parte de todos os sistemas dessa natureza. Apesar das cautelas adotadas pelos agentes da ditadura, pretendendo mascarar a verdadeira natureza do golpe de Estado chamando-o de “revolução redentora” ou “revolução de 31 de Março”, a realidade da ditadura ficou logo muito evidente, apesar da censura da imprensa e das tentativas de ocultar o que se passava nos quartéis e nos presídios políticos.
A Ditadura em ação
Quanto às características essenciais, o golpe militar de 1964 instaurou no Brasil uma ditadura, um sistema de poder arbitrário, que praticou, favoreceu e permitiu muitas espécies de violências contra a pessoa humana, além de ter sido amplamente favorável à corrupção, como sempre ocorre nas ditaduras.
Num livro publicado em 2005, com o título “AI-5 – A Opressão no Brasil”, Hélio Contreiras, jornalista que acompanhou muito de perto as ações dos governos ditatoriais e que, apesar das restrições e dos riscos inerentes a governos ditatoriais, faz revelações importantes sobre os subterrâneos do sistema, ressaltando também alguns pontos importantes para conhecimento das verdadeiras características e dos métodos usados naquele período ditatorial. Nessa obra o autor enfatiza as violências ocorridas depois da edição do Ato Institucional número 5, o famigerado AI-5, de 13 de Dezembro de 1968. A ditadura foi violenta desde sua implantação, que já implicava, por si mesma, uma violência contra a Constituição e as instituições democráticas, mas a partir da edição do AI-5 ocorreu o recrudescimento das arbitrariedades e violências contra os que, falando, escrevendo ou participando de reuniões pacíficas, manifestavam oposição ao regime ditatorial e falavam em democracia liberdade e direitos.
Aumentaram as prisões arbitrárias, as práticas de tortura, os desaparecimentos de pessoas, as invasões de domicílios, cassações de direitos sem a possibilidade de recurso ao Judiciário ou a qualquer autoridade ou mesmo de obter simples esclarecimentos sobre os motivos da punição, além de ampla corrupção, tanto quanto ao uso das instituições públicas quanto relativamente aos desvio de recursos públicos. É importante deixar claro que tudo isso já ocorreu desde a substituição do Presidente da República, eleito pelo povo, por uma junta militar, em 1o. de Abril de 1964. A edição de um Ato Institucional, que depois passaria a ser denominado Ato Institucional número 1, ou AI-1, em 9 de Abril de 1964, formalizou a implantação da ditadura militar e deixou expresso que ela seria permanente, mas o certo é que já se tinha instalado um sistema arbitrário e corrupto. Tal sistema foi sofrendo desgaste em decorrência dos tremendos abusos praticados em nome do golpe de Estado que se autodenominou revolução e cuja essência, desumana, imoral e antijurídica, foi sendo revelada com absoluta clareza com o passar do tempo.
Os chefes e agentes do sistema ditatorial, preocupados em resguardar uma imagem democrática, mas também para precaver-se de uma futura responsabilização, procuraram impedir o conhecimento público de suas praticas violentas e ocultar ou dificultar a identificação dos comandantes e executores, adotando “nomes de guerra” em substituição à sua verdadeira identidade e afinal, quando já se prenunciava o fim da ditadura, fazendo um simulacro de legislação declarando sigilosos os arquivos contendo informações sobre a ditadura. Apesar de todas essas fraudes, muita coisa já foi revelada, com base em documentos sigilosos produzidos pelo próprio sistema e que vazaram por vários meios, bem como por meio de dados e informações que não puderam ser ocultados ou que vieram a público à medida em que o poder ditatorial foi sendo minado por divergências internas e enfraquecido pela reação do povo, que já conhecia e não tolerava a verdadeira essência do sistema ditatorial. Além disso, o testemunho de vítimas da ditadura tem sido de grande valia para o conhecimento dos fatos e a identificação dos responsáveis.
Segundo a clássica expressão de Cícero, o notável tribuno romano, “a história é mestra da vida, senhora dos tempos e luz da verdade”. De fato, é fundamental o conhecimento da história, entre outros motivos, para que não se repitam os erros cometidos. Por isso é de extraordinária importância o conhecimento da história e a obtenção dos depoimentos de quem foi vítima ou de quem fez o que era possível para defender as vítimas e restaurar o sistema democrático. O conhecimento da realidade da ditadura que infelicitou o Brasil durante mais de vinte anos será de enorme utilidade para que o povo brasileiro seja alertado e jamais sucumba aos argumentos enganosos dos que, apresentando-se como defensores da liberdade e dos valores fundamentais da pessoa humana, na realidade buscam a satisfação de suas ambições ou a obtenção de poder para a imposição de sua intolerância.
Além disso, o conhecimento desses fatos será também valioso para todos os povos, para que não se aceitem o poder arbitrário, a violência contra pessoas e instituições, sob pretexto de defender a liberdade, a democracia e o direito. Se há injustiças, corrupção, desgoverno, o caminho legítimo, o único realmente legítimo e eficiente, para correção desses vícios é o uso dos meios jurídicos previstos nos tratados e nas Constituições. Os poderosos que praticam violações dos direitos humanos sob pretexto de combater a subversão ou o terrorismo são farsantes sem escrúpulos, criminosos contra a humanidade, que devem ser desmascarados, opondo-se a eles a seus atos arbitrários a máxima resistência, em defesa da dignidade da pessoa humana. Fora do respeito aos direitos humanos o que existe é o arbítrio, é a lei do mais forte e menos escrupuloso, e com base nessa lei jamais será implantada uma sociedade justa, harmoniosa e solidária, que assegure à humanidade o direito de viver em paz.