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Dia dos Namorados: Que Contradição!

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Dia dos namorados soa meio cafona, afinal o imperativo é “Ficar”, mas, sem tanto esforço, o comércio põe em foco esse dia. Termina vencendo, porque, desse modo, sustenta uma coisa que já podia ter se perdido no tempo. Se ele sobreviveu e porque não somos tão pós-modernos assim. Por um determinado ângulo deve-se certa gratidão ao mercantilismo, por não deixar perecer essa noção sublime do amor. Mas o dia dos namorados, enfadonho, chato para quem não tem, suscita algum encantamento. Somente se namora apenas e legitimamente aquilo que se deseja, não existe namoro sem desejo de conhecer profundamente, de possuir o objeto que enfeitiça os olhos, palpita o coração, faz viajar nas doces ilusões que despertam tesão.

Enamorar é uma das formas de manifestar a individualidade e de realizar a subjetividade (ALBERONI, 1992). É confortante e revigorante o carinho e o calor dos braços da pessoa namorada. Mas, os relacionamentos são confusos, complexos etc., porque não fomos educados para se relacionar. Contrariando São Francisco, por que não se dar sem esperar receber nada em troca? Como instiga Roberto Freire, por que não se ama e se dar vexame? O amor é tabu, e se tornou mais tabu ainda na contemporaneidade. Parece sinônimo de fraqueza. Exatamente porque contraria aquilo que o social prega: independência, força, racionalidade, sucesso e crescimento material.

E assim, deixa implícito que o resto é bobagem. Mas quem não gostaria de receber uma escandalosa e pública declaração de amor da pessoa desejada? Parafraseando Oscar Wilde, diria que é preciso ser forte, muito forte para ousar falar desse sentimento que muitos, mesmo que dentro da legalidade (refiro-me ao heterossexual), se constrangem em dizer seu nome.

Segundo Jacques Ruffié (2001, p.58), “não podemos fazer o amor e a guerra ao mesmo tempo”. Um grande paradoxo é que, ao fazer um pacto de amor, explícito ou subjacente, parece que também se faz uma declaração de guerra. Seria a doença? Por que amar custa tão caro? E por que ao invés de vingarem as promessas de amor, crescem as daninhas: neuras, incertezas, imaturidades que contaminam o bendito fruto, e fazem permanecer azedo ou, antes disso, simplesmente morrer.

Certamente, amar não é sofrer, o sofrimento resulta de uma enorme incapacidade de amar. Sabota-se facilmente o amor porque ele é delicado, e tem na natureza o germe da insegurança, pode se fixar como uma pintura na parede ou voar, feito borboleta, sob a ameaça dos mais sutis estímulos. Como diz Pondé (2010, p.188), “o amor é frágil e sobrevive mal na realidade”. Dependemos, em boa parte, do amor sensual, dos afetivos e subjetivos toques do outro. É mais imune a doenças quem, verdadeiramente, têm os olhar e toque do outro. Pois, “a carícia, esse contato táctil, estimula os nervos, provocando a secreção de endorfina, um tipo de morfina natural” (CYRULNIK, 2001, p.211). O amor é liberdade, embora a liberdade verdadeira, na compreensão de Pondé (2010), seja uma forma de morte.

Por que simplesmente as pessoas não amam e ficam abertas a receber o amor?

Por que, em geral, os indivíduos, em especial os homens, são eternamente imaturos para o amor? O ator Johnny Depp (2011, p.110), ilustra bem isso: “Levou um tempo para eu descobrir o que queria, e aí conheci a mulher que me fez ver o que estava perdendo...”. E parece ter conseguido a segurança ou porto seguro na parceira: “adorei o fato de ela ser absolutamente descontraída em relação a si mesma, de não manter nenhuma fachada, muro de proteção ou máscara. [...] Mesmo sendo bem sucedida [...]. Continuou a mesma, uma pessoa muito doce, com uma tremenda segurança em relação a si própria” (p.114).

É quase que habitual o absurdo de quem se diz amante, querer colocar rédeas no outro, esse outro que mesmo lhe dizendo amar deseja outro. Dividir, sem dúvida, dói, porque o indivíduo foi educado para somar, acumular. Assim, faz sofrer sentir-se fora do campo de visão do outro, perceber que o olhar do outro escorrega na busca do que, talvez, nem ele mesmo sabe o que quer de um possível novo outro. Eleva a autoestima saber que se tem todo olhar e um coração voltados para sua pessoa e para seu acolhimento, pensar que é a pessoa mais interessante na vida do outro. Mas será que, nos dias de hoje, isso existe?

A exclusividade, quando não significa prisão, é um hálito de bem-estar, o outro está na sua vida por opção em meio a tantas outras possibilidades. É delicioso saber que outro se encanta e é encantado, tem uma linguagem, nuances que só os dois conseguem entender, decifrar, vai além de qualquer tentativa lógica de explicar isso em detalhes, é a tal química que não só se mistura, mas também espalha sua fragrância. Volta-se para casa com mais vontade quando tem o outro que anseia por essa volta, e tão sem graça voltar e não ter ninguém a sua espera, embora algumas pessoas se contatem com um cão eufórico balançando o rabo com a sua chegada. Para André Comte-Sponville (2009, p.45), “o amor, mesmo o mais fraco, o mais doentio, vale mais que alguma onipotência que fosse sem amor”.

Por que se fantasia sempre um outro melhor? Por vezes, o melhor seja ficar com o mesmo, mas a indisposição e fartura no mercado impedem de perceber ou desenvolver outros neste mesmo. Afinal o homem é multifacetado. Talvez o acasalamento não passe de uma invenção, e o humano seja, de fato, essencialmente solitário. Daí a dificuldade de viver a solidão, e a dois ela se potencializa, se torna insuportável. Mas tão belo é o amor, tão excitante é a paixão! E tudo começar de novo.

Entretanto, como ressalta Silva (2010), é preciso respeito pelo humano (homem ou mulher) para não abusar desse lugar em que foi colocado, ou melhor, que de súbito foi pinçado do anonimato para ser “celebridade” na vida do outro. Se isto pode fazer a mulher arrogada, ao macho muito mais, porque além do seu poder fálico, foge das emoções e da intimidade - esta que é muito mais do que corpos nus na cama. Somente uma pessoa sensata é capaz de suportar ser esse centro na condição de figura sem bagunçar o “coreto” do outro ou fazê-lo de fundo.

Jovem Casal se BeixandoMas cuidado, teu amor pode não ser (e vice-versa) exatamente aquele ou aquela com quem estais neste dia dos namorados, que tens nos braços, com quem trocas presentes. No entanto, aquela pessoa que neste dia tão bem ressaltado pelo comércio, cantado em verso e prosa e manifesto, em particular, nos quartos de motéis, está no teu imaginário.  Mesmo que estejas com alguém ao teu lado (tido como namorado ou namorada), nada disso vai atenuar esse engodo, jogo de faz de conta, uma representação, pois vivencias uma farsa, uma troca superficial de presentes que significam apenas lucro para o comércio. Teu amor é aquele ou aquela com quem desejas estar neste dia.

A pessoa quem você realmente namora está no teu pensamento, mesmo que fisicamente distante. Mas, se não tem ninguém, mesmo como sobra, na sua tela mental, de certo o ser ao lado é a tua pessoa namorada e, se a recíproca for verdadeira, eis o chamado do amor.

Referencial

ALBERONI, F. Enamoramento e amor. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.
DEEP, J. Um pirata e seus demônios. Entrevista concedida a Harold Von Kursk. Revista ALFA, São Paulo, mai de 2011.
COMTE-SPONVILLE, A. A vida humana. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.
CYRULNIK, B. Existiriam bases biológicas pra o amor? Os hormônios da fantasia. In:
PESSIS-PASTERNARK, G. (Org.). A ciência: deus ou diabo? São Paulo: Editora UNESP, 2001.
PONDÉ, L. F. Contra um mundo melhor: ensaios do afeto. São Paulo: Leya, 2010.
RUFFIÉ, J. O sexo no coração da vida.In: PESSIS-PASTERNARK, G. (Org.). A ciência: deus ou diabo? São Paulo: Editora UNESP, 2001.
SILVA, V. G. Nuances dos psicológicos e algumas inquietações pós-modernas. João Pessoa: Ideia, 2010.