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Título do artigo:

O Pagador de Promessas

97

por:

[Dias Gomes]

Um homem percorre sete léguas do interior da Bahia até Salvador, carregando uma cruz nos ombros. Todo esse esforço tem apenas um objetivo: agradecer a Santa Bárbara pela recuperação do animal que lhe dá sustento na lavoura. Ao chegar à cidade grande, acompanhado de sua mulher, Zé‐do‐Burro, como passa a ser conhecido, se sente perdido, mas a obstinação de cumprir sua promessa o faz enfrentar qualquer obstáculo.

Um estrangeiro em seu próprio país, Zé‐do‐Burro vem de um mundo distante da disputa de poder na qual repentinamente se vê envolvido. Para os poderosos de Salvador, a jornada do pagador de promessas é um perigo ou uma oportunidade. A igreja encara seu périplo como subversivo, pois chama a atenção da população para uma religiosidade não mediada por ela. Para os jornais, a história pode render boas manchetes e grande vendagem. Para a polícia, a inocência de Zé é uma oportunidade de demonstrar sua força. E, para o povo, a luta de um passa a ser a luta de todos.

Sobre o autor

Membro da Academia Brasileira de Letras, Dias Gomes começou a escrever para teatro aos 15 anos. Até a sua morte, criticou a atual situação da dramaturgia brasileira, que acreditava não ter a menor ligação com a realidade do país. O dramaturgo lamentava que a ditadura tivesse acabado com o crescimento da dramaturgia nacional iniciado nos anos 50. Nas décadas de 60 e 70, teve praticamente todas as peças censuradas pelo regime militar.

A peça de Dias Gomes tem nítidos propósitos de evidenciar certas questões socioculturais da vida brasileira, em detrimento do aprofundamento psicológico de seus personagens. Assim, ganha força no drama a visão crítica quanto:

a) à intolerância da Igreja católica, personificada no autoritarismo do Padre Olavo, e na insensibilidade do Monsenhor convocado a resolver o problema;
b) à incapacidade das autoridades que representam o Estado ‐ no episódio, a polícia ‐ de lidar com questões multiculturais, transformando um caso de diferença cultural em um caso policial;
c) à voracidade inescrupulosa da imprensa, simbolizada no Repórter, um perfeito mau‐caráter, completamente desinteressado no drama do protagonista, mas muito interessado na repercussão que a história pode ter;
d) ao grande fosso que separa, ainda, o Brasil urbano do Brasil rural: Zé do Burro não consegue compreender por que lhe tentam impedir de cumprir sua promessa; os padres, a polícia, a imprensa não conseguem compreender quem é Zé do Burro, sua origem ingênua, com outros códigos culturais, outras posturas. Além disso, a peça mostra as variadas facetas populares: o gigolô esperto, a vendedora de quitutes, o poeta improvisador, os capoeiristas. O final simbólico aponta em duas direções. Em primeiro lugar a morte do Zé do Burro mostra‐se com fim inevitável para o choque cultural violento que se opera na peça: ninguém, entre as autoridades da cidade grande, é capaz de assimilar o sincretismo religioso tão característico de grandes camadas sociais no Brasil, especialmente no interior nordestino. Em segundo lugar, a entrada dos capoeiristas na igreja, carregando a cruz com o corpo, sinaliza para rechaçar a inutilidade daquela morte: os populares compreenderam o gesto de Zé do Burro.

Aspectos estruturais

Capa do Livro O Pagador de PromessasTrata‐se de um texto escrito para teatro, ou seja, para ser levado ao palco, ser encenado. A peça é dividida em três atos, sendo que os dois primeiros ainda são subdivididos em dois quadros cada um. Após a apresentação dos personagens, o primeiro ato mostra a chegada do protagonista Zé do Burro e sua mulher Rosa, vindos do interior, a uma igreja de Salvador e termina com a negativa do padre em permitir o cumprimento da promessa feita. O segundo ato traz o aparecimento de diversos novos personagens, todos envolvidos na questão do cumprimento ou não da promessa e vai até uma nova negativa do padre, o que ocasiona, desta vez, explosão colérica em Zé do Burro. O terceiro ato é onde as ações recrudescem, as incompreensões vão ao limite e se verifica o dramático desfecho.

Personagens

Zé‐do‐Burro; Rosa; Marli; Bonitão; Padre; Sacristão; Guarda; Beata; Galego; Minha Tia; Repórter; Fotógrafo; Dedé Cospe‐Rima; Secreta; Delegado; Mestre Coca; Monsenhor; Manoelzinho Sua‐Mãe e a Roda de Capoeira.

Ação: ‐ Salvador
Época: ‐ Atual

Primeiro ato
Primeiro quadro

A ação da peça tem início nas primeiras horas da manhã [4 e meia], numa praça, em frente a uma igreja, em Salvador. O personagem denominado Zé do Burro carrega uma cruz e se aloja na frente da igreja. A seu lado Rosa, sua mulher, apresentada como tendo 'sangue quente' e insatisfação sexual. Zé espera a igreja abrir para cumprir sua promessa, feita a Santa Bárbara. Aparecem no lugar, algum tempo depois, Marli e Bonitão: ela prostituta; ele, gigolô. Há uma clara relação de exploração e dependência entre eles. Encontrando Zé, Bonitão dirige‐se a ele e percebe ser alguém ingênuo. Rosa, por sua vez, conversando com o gigolô, queixa‐se de Zé, contando que ele, na sua promessa, dividiu suas terras com lavradores pobres. Percebendo a ingenuidade, Bonitão propõe‐se a providenciar um local para Rosa descansar. Zé não só aceita, como incentiva. Saem os dois, Bonitão e Rosa, de cena.

Segundo quadro

Aos poucos, começa o movimento ao redor da praça. Aparecem a Beata, o sacristão e o Padre Olavo, titular da igreja. Zé explica a promessa: Nicolau foi ferido com a queda de uma árvore; estando para morrer, Zé fez a promessa. O burro ‐ Nicolau é um burro! ‐ salva‐se. Ingenuamente, Zé revela ter usado as rezas de Preto Zeferino e feito a promessa num terreiro de candomblé, a Iansã, equivalente afro de Santa Bárbara. O padre fica escandalizado. Estabelece‐se o conflito. O sincretismo Iansã‐Santa Bárbara, natural para Zé do burro, é um grandioso pecado para o padre. A situação agrava‐se com a revelação da divisão de terras. Impasse. O padre manda fechar a igreja e proíbe o cumprimento da promessa. Zé do burro fica atônico.

Primeiro Ato
Primeiro Quadro

Ao subir o pano, a cena está quase às escuras. Apenas um jato de luz, da direita, lança alguma claridade sobre o cenário.

Mesmo assim, após habituar a vista, o espectador identificará facilmente uma pequena praça, onde desembocam duas ruas.

Uma à direita, seguindo a linha da ribalta, outra à esquerda, ao fundo, de frente para a plateia, subindo, encadeirada e sinuosa, no perfil de velhos sobrados coloniais. Na esquina da rua da direita, vemos a fachada de uma igreja relativamente modesta, com uma escadaria de quatro ou cinco degraus. Numa das esquinas da ladeira, do lado oposto, há uma vendola, onde também se vende café, refresco, cachaça etc.; a outra esquina da ladeira é ocupada por um sobrado cuja fachada forma ligeira barriga pelo acúmulo de andares não previsto inicialmente. O calçamento da ladeira é irregular e na fachada dos sobrados vêem‐se alguns azulejos estragados pelo tempo. Enfim, é uma paisagem tipicamente baiana, da Bahia velha e colonial, que ainda hoje resiste à avalancha urbanística moderna.

Devem ser, aproximadamente, quatro e meia da manhã.

Tanto a igreja como a vendola estão com suas portas cerradas.

Vem de longe o som dos atabaques dum candomblé distante, no toque de Iansan. Decorrem alguns segundos até que Zé‐do‐Burro surja, pela rua da direita, carregando nas costas uma enorme e pesada cruz de madeira. A passos lentos, cansado, entra na praça, seguido de Rosa, sua mulher. Ele é um homem ainda moço, de 30 anos presumíveis, magro, de estatura média. Seu olhar é morto, contemplativo. Suas feições transmitem bondade, tolerância e há em seu rosto um “quê” de infantilidade. Seus gestos são lentos, preguiçosos, bem como sua maneira de falar. Tem barba de dois ou três dias e traja‐se decentemente, embora sua roupa seja mal talhada e esteja amarrotada e suja de poeira. Rosa parece pouco ter de comum com ele. É uma bela mulher, embora seus traços sejam um tanto grosseiros, tal como suas maneiras. Ao contrário do marido, tem “sangue quente”. É agressiva em seu “sexy”, revelando, logo à primeira vista, uma insatisfação sexual e uma ânsia recalcada de romper com o ambiente em que se sente sufocar. Veste‐se como uma provinciana que vem à cidade, mas também como uma mulher que não deseja ocultar os encantos que possui.
Zé‐do‐Burro vai até o centro da praça e aí pousa a sua cruz, equilibrando‐a na base e num dos braços, como um cavalete. Está exausto. Enxuga o suor da testa.

Segundo ato
Primeiro quadro

Duas horas mais tarde, já a movimentação no lugar é intensa. O Galego, dono do bar, abriu seu estabelecimento. Surgem Minha Tia, vendedora de acarajés, carurus e outras comidas típicas, Dedé Cospe‐Rima, poeta popular, ao estilo repentista e o Guarda. Zé do burro quer cumprir a promessa. O Guarda tenta intervir. Rosa reaparece com 'ar culpado'. Chega o Repórter. Seguindo a linha do oportunismo sensacionalista, o repórter quer tirar vantagens da história de Zé do Burro. Quer torná‐lo um mártir, para virar notícia. Enquanto isso descobre‐se que Rosa transou com Bonitão. Marli faz um pequeno escândalo, denunciando a história Rosa com Bonitão.

Segundo quadro

Três da tarde, Dedé oferece poemas para Zé, a fim de derrotar o Padre. Aparecem, em momentos subsequentes, o capoeirista Mestre Coca e o policial, o Secreta, chamado por Bonitão, ficando ambos, por enquanto, nas cercanias. Zé começa a perder a paciência e arma uma gritaria. O padre reage. Chega o Monsenhor, autoridade da igreja, propondo a Zé uma solução: ele, Monsenhor, na qualidade de representante da Igreja, pode liberar Zé da promessa, dando‐a por cumprida. Zé não aceita, dizendo que promessa foi feita à Santa e só ela poderia liberá‐lo. Segue o impasse. Zé explode novamente e avança com a cruz sobre a Igreja. O padre fecha a porta. Zé, já desesperado, bate com a cruz na porta. O drama é total.

Segundo Ato
Primeiro Quadro

Aproximadamente, duas horas depois. Abriu‐se a vendola e o Galego aparece trepado num caixote, amarrando um cordão com bandeirolas vermelhas e brancas que vai da porta da venda ao sobrado do lado oposto. Zé e sua cruz continuam no meio da praça. Ouve‐se um pregão: “Beiju... olha o beiju!” Logo após, surge no alto da ladeira uma preta em trajes típicos, com um tabuleiro na cabeça. Ela desce a ladeira e ao passar pelo Galego saúda.

Minha Tia
Iansan lhe dê um bom‐dia.

Galego
(Espanhol)
Gracias, Minha Tia.
Minha Tia vai até à igreja e aí, junto dos degraus, pára.
A critério da direção e em momentos em que não prejudiquem a ação, transeuntes cruzarão a praça, durante todo o ato.

Minha Tia
(Para o Galego)
Quer vir aqui dar uma mãozinha pra sua tia, meu branco?
Galego apressa‐se a ir ajudá‐la. Retira primeiro o cavalete que está sobre o tabuleiro, abre‐o, depois ajuda‐a a tirar o tabuleiro da cabeça e colocá‐lo em cima do cavalete.

Minha Tia
Santa Bárbara lhe pague.
(Nota Zé‐do‐Burro)
Oxente! Que é aquilo?

Galego
Não sei. Já estava acá quando abri a venda. Parece maluco.
(Volta a pregar as bandeirolas, enquanto Minha Tia põe‐se a arrumar o fogareiro, procura acendê‐lo).
Desce a ladeira, passo mole, preguiçoso, Dedé Cospe‐Rima.
Mulato, cabeleira pixaim, sob o surrado chapéu de coco ‐ um adorno necessário à sua profissão de poeta-comerciante.
Traz, embaixo do braço, uma enorme pilha de folhetos: abecês, romances populares em versos. E dois
cartazes, um no peito, outro nas costas. Num se lê: “ABC da Mulata Esmeralda ‐ uma obra‐prima” e no outro “Saiu agora, tá fresco ainda! O que o cego Jeremias viu na Lua”.

Dedé
(declama)
Bom dia, Galego amigo!
dia assim eu nunca vi;
para saudar Iansan,
não repare eu lhe pedi:
me empreste por obséquio
dois dedos de parati.

Galego
É, com esta história de hacer versos, usted sempre me leva na
conversa.
(entra na venda e dá a volta por trás do balcão)
É boa mesmo essa do cego Jeremias?
(Serve o parati).

Terceiro ato

Entardecer. Muita gente na praça e nos arredores da Igreja. Há uma roda de capoeira. O Galego, oportunista, oferece comida grátis a Zé, pois a história está trazendo movimento ao seu bar. O Secreta, no bar, avisa que a polícia prenderá Zé, ameaçando os capoeiristas, caso eles interfiram. Marli volta. Ofende Rosa, ofende Zé. O protagonista parece mudar de atitude. Resolve ir embora 'à noite'. Rosa quer ir embora já. Conta que Bonitão avisou a polícia. Retorna o repórter, que tenta montar um verdadeiro circo em torno do Zé, com o objetivo de vender o jornal. Chega Bonitão e convida Rosa para ir com ele. Zé pede a ela para ficar. Rosa hesita, a princípio, mas, em seguida, vai com Bonitão. Mestre Coca avisa Zé sobre a chegada da polícia. Zé está perplexo: 'Santa Bárbara me abandonou'. Da igreja saem o Sacristão, o Guarda, o Padre e o Delegado. Tensão da cena acentua‐se. Zé ainda tenta, ingênua e inutilmente, explicar alguma coisa. Ao ser cercado, puxa uma faca. As autoridades reagem. Os capoeiristas também. Briga e confusão. De repente, um tiro espalha gente para todos os lados. Zé é mortalmente ferido. Mestre Coca olha para os companheiros, que entendem a mensagem. Os capoeiristas tomam o corpo do Zé colocam‐no sobre a cruz e, ignorando o padre e polícia, entram na igreja carregando a cruz.


Me deixe, Rosa! Não venha pra cá!
Zé‐do‐Burro, de faca em punho, recua em direção à igreja.
Sobe um ou dois degraus, de costas. O Padre vem por tráse dá uma pancada em seu braço, fazendo com que a faca vá cair no meio da praça. Zé‐do‐Burro corre e abaixa‐se para apanhá‐la. Os policiais aproveitam e caem sobre ele, para subjugá‐lo. E os capoeiros caem sobre os policiais para defendê‐lo. Zé‐do‐Burro desapareceu na onda humana.
Ouve‐se um tiro. A multidão se dispersa como num estouro de boiada, Fica apenas Zé‐do‐Burro no meio da praça, com as mãos sobre o ventre Ele dá ainda um passo em direção à igreja e cai morto

Rosa
(Num grito)
Zé!
(corre para ele)

Padre
(Num começo de reconhecimento de culpa)
Virgem Santíssima!

Delegado
(Para o Secreta)
Vamos buscar reforço
(Sai, seguido do Secreta e do Guarda).
O Padre desce os degraus da igreja, em direção do corpo de Zé‐do‐Burro.

Rosa
(Com rancor)
Não chegue perto!

Padre
Queria encomendar a alma dele...

Rosa
Encomendar a quem? Ao Demônio?
O Padre baixa a cabeça e volta ao alto da escada. Bonitão surge na ladeira. Mestre Coca consulta os companheiros com o olhar. Todos compreendem a sua intenção e respondem afirmativamente com a cabeça. Mestre Coca inclina‐se diante de Zé‐do‐Burro, segura‐o pelos braços, os outros capoeiras se aproximam também e ajudam acarregar o corpo. Colocam‐no sobre a cruz, de costas, com os braços estendidos, como um crucificado. Carregam‐no assim, como numa padiola e avançam para a igreja.
Bonitão segura Rosa por um braço, tentando levá‐la dali.
Mas Rosa o repele com um safanão e segue os capoeiras.
Bonitão dá de ombros e sobe a ladeira. Intimidados, o Padre e o Sacristão recuam, a Beata foge e os capoeiras entram na igreja com a cruz, sobre ela o corpo de Zé‐do‐Burro. O Galego, Dedé e Rosa fecham o cortejo. Só Minha Tia permanece em cena. Quando uma trovoada tremenda desaba sobre a praça.

Minha Tia
(Encolhe‐se toda, amedrontada, toca com as pontas dos dedos o chão e a testa)
Êparrei minha mãe!