1- Enredo
À semelhança dos relatos épicos ditos populares, Macunaíma é uma longa sequência de lendas variadas e justapostas e de numerosas ações, quase todas praticadas pelo herói homônimo e não raro apresentadas de forma um tanto desconexa. Dada a grande quantidade de eventos relatados e, mais ainda, dado o fato de quase todos terem, na economia da obra, importância mais ou menos igual se comparados entre si, torna-se praticamente impossível condensar organizadamente o enredo. De toda maneira, parecem ser os seguintes os principais eventos que formam a moldura narrativa da obra:
Às margens do Uraricoera, filho de uma índia da tribo dos tapanhumas, nasce Macunaíma, um menino preto retinto e feio. Apenas aos seis anos começa a falar e uma das poucas coisas que repete continuamente é: 'Ai, que preguiça'. Contudo, é muito ativo em seus brinquedos com as mulheres. Tem dois irmãos mais velhos, chamados Maanape e Jiguê, e uma cunhada, Sofará, mulher do segundo. Quando esta o leva a passear, Macunaíma transforma-se em um belo príncipe e brinca com ela, o que irrita Jiguê, que a devolve aos pais e faz de Iriqui sua nova mulher, a qual, por sua vez, também brinca com Macunaíma. Desta vez, porém, Jiguê se conforma.
Por artes da cutia, que lhe dá um banho de água envenenada de mandioca, Macunaíma se transforma em homem, mas sua cabeça, a única parte do corpo que não fora molhada, fica pequena. Um dia sai à caça e encontra uma veada com cria e a mata. Fora uma peça que Anhangá lhe pregara, pois ao aproximar-se do animal morto vê que é a própria mãe. Aflito, chama Maanape, Jiguê e Iriqui e todos choram muito. Em seguida partem 'por este mundo'. A certa altura, Macunaíma encontra e, com a ajuda dos irmãos, possui CI, a Mãe do Mato, rainha das icamiabas [uma tribo de 'mulheres sozinhas', ou amazonas], transformando-se, em virtude disto, em Imperador do Mato-Virgem. A viagem continua e Ci, que os acompanha, ao final de seis meses tem um menino de cor encarnada e cabeça chata. A cobra preta morde o peito de Ci. O menino suga o leite da mãe e morre. Depois do enterro do menino, Ci entrega a Macunaíma uma muiraquitã e sobe aos céus, utilizando-se de um cipó. Ao visitar o túmulo do filho no dia seguinte, Macunaíma vê que sobre ele nascera uma planta: era o guaraná.
Continuando a caminhada, Macunaíma e os irmãos enfrentam a boiúna Capei [cobra-grande]. Na fuga, o herói perde o muiraquitã. Os três irmãos a procuram, mas sem resultado. Afinal, o Negrinho do Pastoreio envia a Macunaíma um uirapuru e este revela que a sua pedra-amuleto está nas mãos de Wenceslau Pietro Pietra, um regatão peruano que mora em São Paulo. Infeliz com a perda da muiraquitã, o herói resolve sair à sua procura e parte para a cidade referida. Os irmãos decidem partir com ele. No dia seguinte Macunaíma vai à ilha de Marapatá para ali deixar sua consciência e reunir o maior número possível de bagos de cacau, que têm valor de dinheiro. Ali encontra uma poça de água, que, por ser a marca do pé de São Tomé - o apóstolo que andara pela América -, é encantada. Macunaíma entra nela e fica branco. Jiguê também se banha mas fica de cor vermelha, porque a água estava suja. E Maanape, como a poça ficara quase seca depois do banho de seus irmãos, consegue branquear apenas as palmas das mãos e dos pés.
Depois de assim transformados, chegam a São Paulo, se instalam em uma pensão e vão à casa de Wenceslau Pietro Pietra, que na verdade é Piaimã, o gigante comedor de gente. Piaimã mata o herói e dele faz torresmo para comer com polenta. Porém Maanape, com a ajuda de uma formiga e de um carrapato, consegue fazê-lo reviver, salvando-o do gigante. Depois de várias desavenças com os irmãos, durante a construção de um rancho - quando inventa uma brincadeira chamada futebol-, Macunaíma telefona a Piaimã, disfarçando sua voz e fazendo-se passar por uma francesa. Marca um encontro com ele e, travestido de mulher, vai à casa do gigante, que começa a namorá-lo e lhe mostra a muiraquitã, comprada, segundo diz, da imperatriz das icamiabas. Macunaíma, assustado com as pretensões do gigante, resolve fugir. Contudo, Piaimã o agarra e o coloca num cesto. O herói consegue fugir de novo e é perseguido por um cachorro do regatão e pelo próprio, até chegar à Ilha do Bananal, onde se esconde em um formigueiro. Em determinado momento, quando o gigante já está fora de si e ameaça colocar uma cobra no formigueiro, Macunaíma põe fora o seu 'sim senhor'[pênis] e Piaimã, sem dar-se conta, o agarra e o joga longe. O herói, é claro, vai junto...E chega a São Paulo novamente.
Aborrecido por não ter recuperado a muiraquitã, Macunaíma vai ao RJ pedir proteção a Exu, em um terreiro de macumba, no Mangue, onde Tia Ciata é mãe-de-santo. Uma polaca entra em transe e o herói é consagrado filho de Exu. Um a um os presentes fazem seus pedidos, a que Exu atende ou não. Macunaíma pede vingança contra o gigante Piaimã. Exu promete ajudar o herói e, ato continuo, o gigante sofre, no corpo da polaca, uma série de torturas que Macunaíma vai solicitando. Enquanto isto, em São Paulo, Piaimã vai, paralelamente, sendo massacrado: surra, chifrada de touro, coice de bagual, etc. Depois que a polaca volta a si, os macumbeiros saem pela madrugada. Entre eles estavam Manu Bandeira, Raul Bopp, Blaise Cendrars, Ascenso Ferreira e outros. Em seguida, por vingança da árvore Volomã, da qual fizera cair todos os frutos, Macunaíma é lançado em uma pequena ilha deserta da Baía da Guanabara. Chega então Vei, a Sol, com suas três filhas. Todos juntos entram em uma jangada e aportam ao RJ. A Sol, que deseja casar uma de suas filhas com o herói, recomenda-lhe que se comporte direito, e em seguida parte. Contudo, vendo as mulheres da cidade, ele não aguenta. Grita 'pouca saúde e muita saúva os males do Brasil são', salta em terra e traz para a jangada uma portuguesa, vendedora de peixe.
Vei, a Sol, volta e, encontrando o herói com a varina, diz-lhe que se tivesse se comportado se casaria com uma das suas três filhas e ficaria jovem para sempre. Não o tendo feito, envelhecerá, como todos. Vei, o Sol, vai para a cidade, enquanto Macunaíma fica na jangada, com a portuguesa. À noite dorme em um banco, no Flamengo. Vê uma assombração medonha e foge. No outro dia está novamente em São Paulo, de onde escreve, num estilo que pretende ser clássico, uma carta para as icamiabas, contando sobre os costumes dos habitantes da cidade e pedindo-lhes dinheiro [bagos de cacau], pois gastara todo o que trouxera, principalmente com as donas paulistas, que cobram caríssimo por seus carinhos. Informa ainda que está para recuperar o muiraquitã.
Enquanto isto, Piaimã, que ficara doente com a surra, as chifradas e os coices resultantes da macumba, cuida muito bem da muiraquitã, deitado em cima dela. O herói não consegue reaver a pedra-amuleto. Em suas andanças por SP, Macunaíma interrompe a cerimônia do Dia do Cruzeiro, quando conta a lenda indígena do pai do Mutum, que é o verdadeiro Cruzeiro do Sul. Em seguida mete-se em um tumulto de rua, é preso e foge, passeando por todo o Brasil e voltando novamente a SP, onde tenta, mais uma vez, entrar em contato com Piaimã. Pega sarampo e, ao melhorar, vai outra vez à casa do gigante, mas não o encontra, pois este tinha ido passear na Europa. Jiguê propõe ir atrás do gigante, mas a falta de dinheiro impede a realização da ideia. Os três, então, percorrem o Brasil novamente. A certa altura, encontram uma macaco, que está comendo coquinhos. Este diz a Macunaíma que são seus próprios testículos. O herói acredita e, devido à grande fome, pega uma pedra e esmaga os seus, morrendo em seguida. Contudo, ressuscita logo e pede um palpite a Maanape para jogar no bicho. Maanape acerta e a partir de então os irmãos vivem de habilidade dele, e ficam morando sempre na pensão.
Macunaíma não abandona seu gosto pelas estripulias, roubando Suzi, a nova mulher que Jiguê arrumara. Certo dia, porém, Maanape lê nos jornais uma extraordinária notícia: Wenceslau Pietro Pietra, o gigante, voltara da Europa. A partir daí Macunaíma fica observando de longe a casa dele. O gigante, porém, agarra o chofer do carro em que Macunaíma chegara. O chofer cai em um tacho de macarrão fervendo.
Percebendo que seu destino seria mesmo, o herói entra em luta com o gigante, o engana e faz com que o próprio caia no tacho. Macunaíma recupera a muiraquitã, retorna para a pensão e, logo em seguida, parte com os irmãos para a região do Uraricoera. Quase ao final da viagem, cheia de eventos de vários tipos, Maanape e Jiguê morrem. Macunaíma consegue chegar à antiga tapera. Contudo, atacado de impaludismo, vive triste e só, tendo como companheiro apenas um papagaio, um aruaí falador, ao qual o herói, ao passar dos dias, vai contando suas aventuras. Certo dia de janeiro, sofrendo intensamente com o calor, Macunaíma não resiste e se atira em uma lagoa, sendo atacado por um cardume de piranhas. Estas lhe comem os lábios - onde sempre trazia pendente a muiraquitã - e a pedra desaparece novamente.
Desgostoso com o fato, planta um cipó, sobe ao céu e se transforma na constelação da Ursa Maior.
A terra do Uraricoera ficara deserta. Certa ocasião, um homem chega até lá e ouve uma voz. Era o aruaí falador, velho companheiro de Macunaíma. O papagaio conta ao homem toda a saga do herói e em seguida voa para Lisboa. E o homem era o autor do livro, Mário de Andrade.
2. Personagens principais
Macunaíma, o herói sem nenhum caráter
Nem mesmo forçando os conceitos literários correntes se poderia falar em personagens em Macunaíma. Estes, na obra, não possuem qualquer parentesco com os heróis dos romances ou novelas de tradição narrativa realista/naturalista - no contexto da qual é utilizado o termo -, surgindo antes como representações de funções, ideias ou comportamentos, à semelhança do que ocorre nas fábulas, lendas ou mitos, como se pode perceber claramente naquelas partes em que é mais marcante a presença das lendas indígenas nas quais Mário de Andrade buscou inspiração. Isto posto, é impossível - seja porque esta era a intenção explícita do autor, seja porque a obra foi assim depois interpretada - deixar de observar que o 'personagem'/protagonista Macunaíma tem sido e continua sendo visto como símbolo do homem brasileiro, que teria sua natureza psicológico-cultural identificada no subtítulo: 'sem nenhum caráter'. Mas seria isto verdade? E em que sentido? A expressão significaria apenas 'sem características próprias, sem identidade definida, como, ao que parece, era a ideia de Mário de Andrade? Ou - numa visão pessimista que revelaria baixo nível de autoestima - seria sinônimo de 'canalha', 'safado' e 'mau-caráter'? Ou, ainda - numa visão otimista -, significaria 'matreiro', 'manhoso' e 'aproveitador'? Por outro lado, tais estereótipos - tanto um quanto outro - teriam alguma base na realidade ou não passariam de generalizações superficiais, levianas e sem qualquer fundamento histórico, principalmente se se levar em conta a extrema heterogeneidade social e cultural da população brasileira? Finalmente, aceitar tais interpretações não seria a expressão de uma atitude equivocada por levar a sério demais uma brincadeira, não desprovida de sentido, é claro, mas que exatamente por ser uma brincadeira não pode ser tomada ao pé da letra?
Seja como for, obras literárias e personagens não raro extrapolam os limites do tempo, do texto e das intenções do autor e, com ou sem respaldo na realidade, transformam-se em símbolos ou referências de uma coletividade ou de parte dela. E, assim, é inegável que para todo o brasileiro possuidor de certa cultura - e, portanto, de certo status sócio-econômico - Macunaíma, o herói criado por Mário de Andrade, é a personificação de um comportamento amoral, desabusado e carnavalesco, aproveitador e furiosamente individualista. Um estereótipo que, transcendendo o plano literário e extrapolando o texto, está, sem dúvida, em íntima relação com a auto-imagem que de si têm os grupos dominantes da civilização urbano-industrial do Brasil da segunda de do séc.XX. O que não deixa de ser fato interessante e, talvez, mais um paradoxo diante do qual, provavelmente, Mário de Andrade se surpreenderia.
3. Estrutura narrativa
Um homem - o próprio autor MA, por suposto - chega às margens do Uraricoera, já desertas, e encontra apenas um papagaio falador, que, antes de voar para Lisboa, lhe conta a saga de Macunaíma, a qual, por sua vez, lhe fora por este contada. Esta saga é, também supostamente, o livro composto de 17 capítulos de tamanho diverso e um pequeno epílogo. Quanto ao espaço e ao tempo, a ação se desenvolve no Brasil - principalmente em SP -, com algumas incursões pelas regiões fronteiriças do continente, nas primeiras décadas do séc. XX.
Isto, porém, apenas em princípio e numa visão extremamente superficial, pois, à maneira do que ocorre nas fábulas e lendas, tanto o espaço como o tempo são conceitos completamente fluidos na estrutura narrativa, não estando, em absoluto, submetidos às normas resultantes da noção de verossimilhança, quer dizer, não existe atrelamento ao modelo realista/naturalista [ a não ser no fato de a narrativa estruturar-se, com exceção do epílogo, segundo o molde do narrador onisciente em terceira pessoa]. Pelo contrário, os fatos narrados não raro assumem um caráter fantástico, mágico, mítico-sacral ou como se quiser qualificá-lo. Além disto, o cap.IX [ a 'Carta prás icamiabas'], com seu caráter de sátira/paródia, destaca-se radicalmente do restante do enredo e do núcleo temático, impedindo enquadrar a obra num gênero ou numa forma qualquer.