[João Cabral de Melo Neto]
Contexto histórico cultural
Em 1945, com o fim da Segunda Guerra Mundial, o otimismo tomou conta do mundo, e uma nova etapa de desenvolvimento pacífico parecia se aproximar. Os mais céticos, contudo, se lembravam da década de 20, após a Primeira Guerra: as mesmas esperanças tinham surgido, desfeitas pelo conflito de 1939. Assim, não se mostravam tão crédulos quanto à duração da nova era de tranquilidade que se anunciava.
De fato, após a Segunda Guerra, o cenário político do planeta se modificou. Duas potências surgiram vitoriosas, os Estados Unidos e a União Soviética, destronando do centro decisório antigos ocupantes, como: Inglaterra e França, e aparecendo como os novos donos do mundo. Representantes de regimes sociais e políticos antagônicos, o Capitalismo e o Comunismo, passaram a disputar áreas de influência pelo mundo inteiro. Essa disputa recebeu o nome de Guerra Fria.
As duas superpotências se intrometiam nas lutas internas das regiões disputadas, como Coréia e Vietnã, fornecendo armas a uma das facções, com objetivos políticos. Com isso, essas regiões acabaram se transformando em campos de teste para armas avançadas, produzidas nos grandes centros tecnológicos.
Neste quadro geral, era impossível para qualquer país sustentar uma posição de neutralidade. A desobediência às regras da esfera de influência americano-capitalista, ou russo-comunista levava a punições severas no plano comercial, e mesmo à invasão pura e simples. Esta polarização ideológica impedia o surgimento de qualquer opção política aos modelos já estabelecidos.
Não era estranho ao mundo a coexistência ameaçadora de nações fortes e inimigas. Mas, naquele momento, um dado novo modificava os sentimentos que essa coexistência provocava: a bomba atômica. Laçada pelos americanos pela primeira vez no Japão em 1945, vitimando milhares de pessoas, funcionou como um recado aos planos expansionistas dos russos. Estes logo alcançaram a tecnologia atômica e a guerra nuclear passou a ser uma ameaça bastante palpável. Se acontecesse a terceira guerra mundial, o duvidoso consolo que todos tinham era o de que certamente seria a última.
No plano internacional, o ano de 1945 indicou uma nova era de esperanças, com o fim da Segunda Guerra. Também no Brasil, este ano marcou o término da ditadura de Vargas, abrindo perspectiva para um período democrático na vida política nacional. O fato do presidente eleito no ano seguinte ter sido Eurico Gaspar Dutra, que tinha sido ministro do governo Vargas, mostrou que o ditador deposto não estaria completamente ausente do cenário político.
Esta impressão se comprovou quando, nas eleições seguintes Getúlio concorreu, e ganhou. O ex-ditador voltava ao poder agora eleito democraticamente. A classe média intelectualizada temia um novo golpe de estado como o já penetrado por Vargas em 1937, e alguns de seus setores passaram a criticar as atitudes dúbias do presidente. A frustrada tentativa de assassinato do jornalista Carlos Lacerda, que fazia oposição aberta ao governo, acabou vitimando um major da Aeronáutica, e o governo se viu na obrigação de apurar os fatos. Todos os indícios levavam ao governo federal, e a pressão para uma renúncia voltou a assombrar a carreira de Getúlio. Em agosto de 1954, Vargas se suicidou.
Apesar do clima tenso que sucedeu ao suicídio, a normalidade democrática acabou por se instalar, e novas eleições foram convocadas. O presidente eleito, Juscelino Kubitschek, apareceu como solução modernizadora para o atraso brasileiro. Ele prometia realizar obras de 'cinquenta anos em cinco' para acelerar o nosso progresso. Um dos seus atos mais relevantes foi a transferência da capital, do Rio de Janeiro para o interior do país, em Brasília, cidade planejada e construída durante seu governo.
Sucedendo Juscelino, assumiu a presidência Jânio Quadros, em 1961. Contudo, depois de poucos meses de uma administração medíocre, ele renunciou, por motivos até hoje obscuros. O vice-presidente João Goulart não contava com o apoio das Forças Armadas. Os militares acreditavam que Goulart entregaria o país ao comunismo do qual era simpatizante e tentaram impedir-lhe a posse. Firmou-se um acordo político que criou o Parlamentarismo. Este foi desfeito pelo presidente, depois de um plebiscito que indicou a insatisfação popular com o novo modelo. As Forças Armadas passaram a arquitetar a deposição do presidente, o que de fato aconteceu com o golpe de estado de 1964.
Durante a década de 50, a arte brasileira se beneficiou do estado de relativa democracia vivido pelo país. Pesquisas formais indicavam caminhos novos para todos os setores artísticos. A literatura, a música, a pintura, a arquitetura, o cinema, o teatro, passavam por momento de renovação estilística. Essa renovação incluía a vertente política da arte. A União Nacional dos Estudantes [UNE] criou os Centros Populares de Cultura [CPC], que buscavam formas de comunicação artística com as massas, realizando apresentações de música e teatro em portas de fábricas e sedes de ligas camponesas.
Em literatura, surgiu o período denominado de terceiro tempo do Modernismo. Ele se caracterizou por uma retomada das preocupações formais que tinham marcado a primeira geração modernista. A palavra ganhou importância, assumida como centro da expressão estética. A reflexão em torno da arte [linguagem] alcançou níveis de elaboração bastante altos, em virtude do clima de discussão que se instalava no país.
O experimentalismo, isto é, a busca de novas formas de elaboração da linguagem literária, colocou a literatura brasileira em um patamar bastante semelhante ao de outras nações do mundo. Na poesia, a chamada 'geração de 45' [grupo de poetas do terceiro tempo] tentou aliar os avanços modernistas com uma tonalidade clássica.
A preocupação com os destinos da sociedade perdeu o tom localista e regional que tinha tido nas décadas de 30 e 40. A iminência de um conflito nuclear que poderia dizimar a espécie humana fez com que todos passassem a se preocupar com a humanidade como um todo. O pessimismo dominou as concepções filosóficas do período. A ficção se voltava cada vez mais para o interior do ser humano, tentando encontrar ali a chave para a compreensão dos conflitos sociais. João Cabral de Melo Neto foi o principal representante da geração 45. Como outros poetas dessa época, apresentava uma grande preocupação com a construção do poema e com sua forma visual, insistindo na composição de métrica regular. No entanto, ele se destacou pela qualidade de sua poesia. Utilizando-se de uma expressão sintética, fugindo a qualquer tipo de derramamento ou sentimentalidade, João Cabral conseguiu à palavra poética a contundência da pedra. No poema dramático Morte e vida severina, a dureza da expressão corresponde formalmente às dificuldades e desalentos da história do retirante que aperte em direção ao litoral em busca de vida, e só encontra morte pelo caminho. O subtítulo do poema, auto de natal pernambucano, confirma a esperança do título no advento de uma nova vida, que represente a redenção do povo nordestino.
Fernando Marcílio
Morte e Vida Severina - Enredo
Publicada pela primeira vez em 1954 e encenada com grande sucesso em inúmeros palcos do Brasil e de outros países, esta obra, de João Cabral de Melo Neto, estrutura-se na forma de auto, peça de origem medieval e popular.
Além da grande sonoridade provocada pela predominância de versos em redondilha maior [verso de 7 sílabas poéticas, também pertencente à tradição medieval] de rimas sem um esquema regular mas constantes, de repetições de palavras e de versos inteiros. Morte e vida severina prende a atenção do leitor-ouvinte por combinar simplicidade e concentração, fortes imagens visuais e auditivas com uma linguagem muito próxima do registro oral.
Nela, o autor tematiza o itinerário do retirante nordestino, que parte do sertão paraibano em direção ao litoral, em busca de sobrevivência, devido à seca e às precárias se não insustentáveis condições de vida, para a esmagadora maioria da população.
A obra possui 18 trechos ao longo dos quais Severino, o retirante, primeiro apresenta-se ao leitor para em seguida ir relatando, com o auxílio de outras vozes, outros personagens encontrados na travessia, as etapas de que ela se compõe até chegar no Recife, onde o rio se encontra com o mar... Ora dialogando individualmente com ele, ora funcionando como um coro, tais vozes dão mobilidade aos trechos e ressoam de modo a contagiar os que seguem as pegadas do protagonista, explicitadas por títulos que resumem os seus movimentos principais, de forma semelhante às titulações dos capítulos dos romances medievais.
Para facilitar o entendimento do enredo de Morte e vida severina, vamos dividi-lo em duas partes: a primeira compreendendo dos trechos 1 ao 9, e que consiste na viagem da Paraíba ao Recife; e a segunda compreendendo dos trechos 10 ao 18, nos quais aparecem as experiências vividas pelo retirante na cidade grande.
1ª Parte - Do interior da Paraíba ao Recife: a busca da vida x a sucessão de mortes.
Antes de narrar a história de sua vida, Severino, cujo nome de próprio se tornou comum [elemento que estudaremos na seção Personagens], identifica-se ao leitor no trecho 1 - 'O retirante explica ao leitor quem é e a que vai' - como personificação de um tipo humano e brasileiro: o oprimido socialmente, o retirante cuja vida é determinada pelas desigualdades econômicas que se mantêm irreparáveis.
Mas para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história de minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra
Nas etapas desta emigração o que vemos através de seus sonhos, é sempre a morte interrompendo a vida.
No 2º trecho, por exemplo, intitulado Encontra dois homens carregando um defunto numa rede, aos gritos de: ó irmãos das almas! Irmãos das almas! Não fui eu que matei não', há um diálogo entre o Severino-retirante e os carregadores daquele corpo, o corpo do Severino-lavrador.
Aqui se alternam quartetos de versos com 7 e 4 sílabas poéticas, e se repetem no 2º verso de cada quarteto as expressões 'irmãos das almas' [quando a fala é de Severino] e 'irmão das almas' [quando a fala é dos carregadores do corpo], formando uma espécie de refrão, de ladainha, de coro, que fortalecem a dramaticidade e o lirismo de muitas partes do texto.
O diálogo nos informa que Severino-lavrador morreu 'de morte matada', assassinado à bala, numa emboscada, por 'Ter uns hectares de terra.../ de pedra e areia lavada / que cultivava'. Às perguntas de Severino-retirante sobre quem o emboscou e que roças 'ele podia plantar / na pedra avara', e também sobre o por que o fizeram as respostas são: '- Ali é difícil dizer / irmão das almas. / Sempre há uma bala voando / desocupada', '- Nos magros lábios de areia, irmão das almas, dos intervalos das pedras, / plantava palha' e '- Queria mais espalhar-se / irmão das almas, / queria voar mais livre / essa ave-bala'. Vemos assim, as imagens da 'ave-bala' e dos 'magro lábios de areia', tanto a impunidade do crime quanto a estreiteza do pedaço de terra que o deflagra:
'- Tinha somente dez quadras, / irmão das almas, / todas nos ombros da serra, 'nenhuma várzea'...
Severino retirante se oferece para ajudar a levar o morto, o que permite que m dos condutores possa voltar para casa. Uma fala final deste trecho exemplifica a ironia com que é retratada a morte, de forma crescente à medida que aumenta o número de cadáveres: '- Mais sorte tem o defunto, / irmãos das almas, / pois já não fará na volta / a caminhada'.
No 3º trecho - O retirante tem medo de se extraviar porque seu guia, o rio Capibaribe, cortou com o verão - as imagens das vilas e cidades por onde Severino-retirante vai passar com um rosário, e da estrada como uma linha, enriquecem-se com a imagem do Capibaribe. O rio-guia, identificado como o homem do nordeste, tem uma sina a cumprir, mas no verão a seca o interrompe, e ele se transforma em 'pernas que não caminham...
Entretanto, o som de uma categoria orienta o viajante, que encontra, ao segui-la, o segundo defunto - trecho 4; Na casa a que o retirante chega estão cantando as excelências para um defunto, enquanto um homem, ao lado de fora, vai parodiando as palavras dos cantadores. Nos trechos 5 e 6, e nos trechos 7 e 8, mais duas interrupções ocorrem na travessia do retirante. A primeira [referente aos trechos 5 - Cansado da viagem, o retirante pensa em interrompê-la por uns instantes e procurar trabalho onde se encontra e 6 - Dirige-se à mulher na janela que depois descobre tratar-se de quem se saberá] decorre do cansaço de Severino. Perante a sucessão de mortes que testemunha vontade de, como o rio, 'interromper sua linha', permanecer onde está. Vê, então, uma mulher na janela que lhe parece 'remediada' e resolve perguntar-lhe por trabalho. O diálogo entre o protagonista e a mulher faz com que primeiro, respondendo às perguntas dela, enumere os ofícios que já teve [lavrador, vaqueiro, moedor de cana em engenhos, 'suportar o sol' e, 'havendo ou não [trabalho] trabalhar'], enquanto a mulher indaga se sabe 'benditos rezar, cantar excelências, defuntos encomendar...' Trata-se de uma encomendadora de mortos, que 'se soubesse rezar ou mesmo cantar' lhe proporia sociedade, 'que a freguesia bem dá'.
O diálogo então se inverte, Severino quer saber 'como a senhora, comadre, pode manter seu lar' e ela, rezadora titular de toda a região, responde-lhe: '- Como aqui a morte é tanta, / só é possível trabalhar / nessas profissões que fazem / da morte ofício ou bazar'. Enumera por sua vez os 'profissionais da morte' - farmacêuticos, coveiros, 'doutor de anel no anular'- denominado-os 'retirantes às avessas', isto é, pessoas que sobem do mar para o sertão e cultivam os 'roçados da morte', os quais ironicamente 'nem é preciso esperar / pela colheita: recebe-se na hora mesma de semear..'
Nos trechos 7 - o retirante chega à zona da mata, que o faz pensar, outra vez, em interromper a viagem e 8 - Assiste ao enterro de um trabalhador de eito e ouve o que dizem do morto os amigos que o levam ao cemitério - a chegada a uma terra 'mais fácil, doce e rica' enche de esperanças o coração do retirante.
Mas, em vez de gente ele vê apenas, numa várzea, um banguê velho em ruína, o que o leva a conclusões apressadas: 'Por onde andará a gente / que tantas canas cultiva? / Feriando: que nesta terra / tão fácil, tão doce e rica, / não é preciso trabalhar / todas as horas do dia, / os dias todos do mês, / os meses todos da vida...'
Tais conclusões são desmentidas no trecho 8, um dos mais conhecidos do texto, no qual o coro dos amigos do morto é uma forma de condenar, agora mais concentradamente, o que já vinha sendo denunciado desde o início; a desigualdade social, o extremo desamparo dos pobres perante o latifúndio, o coronelismo, as grandes oligarquias.
Os versos dirigem-se ao morto, cuja cova 'é a parte que te cabe / neste latifúndio, é a terra que querias / ver dividida', é onde 'estarás mais ancho / que estavas no mundo', é onde 'mais que no mundo / te sentirás largo...'
Assim, o trabalho exercido com justiça e dignidade associa-se com a terra de que, 'além de senhor / será homem de eito e trator [...]. Serás semente, adubo, colheita' numa terra que 'Também te abriga e te veste: / embora com o brim do nordeste'.
Esta enumeração de imagens acaba por identificar o homem morto com a terra onde deveria trabalhar, de onde precisaria tirar o seu sustento, mas que agora... '- Se abre o caixão e te abriga, / lençol que não tiveste em vida; - Se abre o chão e te fecha, / dando-te agora cama e coberta; / - Se abre o chão e te envolve / como mulher com quem se dorme'.
No trecho 9 - o retirante resolve apressar os passos para chegar logo ao Recife - novamente Severino fala com o leitor, por um lado afirmando não ter sentido diferença 'entre o Agreste e a Caatinga, e entre a Caatinga e aqui a Mata' e, por outro, lado identificando-se mais com o rio ['vive a fugir de remansos, / a que a paisagem o convida, / com medo de se deter, / grande que seja a fadiga'], chegar logo 'ao fim dessa ladainha', ao Recife, 'derradeira ave-maria do rosário, derradeira invocação da ladainha, / Recife, onde o rio some / e essa minha viagem se finda...'
2ª Parte
O retirante na cidade grande: a sucessão de mortes x a explosão da vida.
A partir do trecho 10 - Chegando ao Recife, o retirante senta-se para descansar ao pé de um muro alto e caiado e ouve, sem ser notado, a conversa de dois coveiros - Severino inicia seu trabalho pela cidade grande.
Dois coveiros - um do bairro de Casa Amarela e outro do bairro de Santo Amaro - conversam, o primeiro querendo deixar seu cemitério, cujo vaivém de mortos compara com ' paradas de ônibus, com filas de mais de cem', e o segundo comparando o setor do cemitério onde trabalha com 'a estação de trens: diversas vezes por dia chega o comboio de alguém'.
Enquanto isso, afirma o coveiro de Santo Amaro, 'As avenidas do centro / onde se enterram os ricos, / são como porto do mar: / não é ali muito serviço: no máximo um transatlântico / chega ali cada dia / com muita pompa, protocolo / e ainda mais cenografia'. A estes bairros [dentro do cemitério] de usineiros, políticos, banqueiros, industriais, etc, contrapõem-se, continua o coveiro de Santo Amaro, os bairros dos funcionários, dos jornalistas, dos escritores, dos artistas, dos bancários, etc,...
O coveiro de Casa Amarela reconhece um bairro dessa gente no cemitério do qual quer sair; 'Raras as letras douradas, / raras também as gorjetas', e conta ao amigo que conseguiu do administrador mudar de bairro, não de cemitério.
Então, o interlocutor comenta: 'Passas para o dos operários, / deixas o dos pobres vários; / melhor, não são tão contagiosos, / e são muito menos numerosos'.
A conversa prossegue com ambos os coveiros falando dos indigentes, 'da gente retirante / que vem do sertão tão longe... Não podem continuar, / pois tem pela frente o mar. / Não tem onde trabalhar / e muito menos onde morar... essa gente do sertão / que desce para o litoral, sem razão, fica vivendo no meio da lama, / comendo os siris que apanha; / Pois, bem: quando sua morte chega / temos que enterrá-los em terra seca...'e com a sugestão de que morressem no rio, facilitando o trabalho deles. Enfim, a conclusão a que chegam é de que o erro dos sertanejos é virem seguindo 'seu próprio enterro'.
Severino, após ouvir tais palavras, aprende que 'nessa viagem que eu fazia, / sem saber desde o Sertão, / meu próprio enterro eu seguia...' e encontra como solução apressar a própria morte, como o coveiro a descrevera / jogar-se no Capibaribe 'que rio, aqui no Recife, / não seca, vai toda vida...'[trecho 11 - o retirante aproxima-se de um dos cais do Capibaribe].
Do trecho 12 ao 13 ocorre o encontro de Severino com Seu José, um mestre carpina que defende a vida, 'mesmo que em retalhos, a vida de cada dia, que cada dia deve ser conquistada'. Após o trecho 12 [Aproxima-se do retirante um morador de um dos mocambos que existem entre o cais e a água do rio] há a notícia do nascimento de uma criança, filha do carpinteiro [trecho 13 - Uma mulher, da porta de onde saiu o homem, anuncia-lhe o que se verá], e, no trecho 14 [Aparecem e se aproximam da casa do homem vizinhos, amigos, duas ciganas, etc], 15 [Começam a chegar pessoas trazendo presentes para o recém nascido], 16 [Falam as duas ciganas que tinham aparecido com os vizinhos] e 17 [Falam os vizinhos, amigos, pessoas que vieram com presentes, etc] a celebração do evento transcorre.
Os presentes humildes dos amigos, os prognósticos das ciganas vindas dos 'Egitos' [a primeira vendo a criança como um futuro pescador e a segunda como um operário, alguém de condição e de moradia melhores], as falas dos presentes, reconhecendo que 'o menino magro / de muito peso não é, mas tem o peso de homem, de obra de ventre de mulher' e poeticamente o descrevendo ['é belo como o coqueiro / que vence a areia marinha...', 'é tão belo como um sim / numa sala negativa',... 'belo porque é uma porta / abrindo-se em mais saídas...', 'belo porque corrompe / com sangue novo de anemia...' criam atmosfera do trecho 18, que finaliza o poema.
Nele - O carpina fala com o retirante que esteve fora, sem tomar parte em nada'- o pai do menino recém-nascido mostra o filho como fato-exemplo de que a vida deve ser celebrada ela própria, que a sua explosão - que assemelha ao nascimento de mais um pobre o renascimento da existência - pode inverter a sequência de sombras em que mergulhara o retirante, e com ele o leitor, e substituí-la por outra resposta: 'E não há melhor resposta / que o espetáculo da vida: / vê-la desfiar seu fio, / que também se chama vida, / ver fábrica que ela mesma, / teimosamente, se fabrica, / vê-la brotar como há pouco / em nova vida explodida; / mesmo quando é assim pequena / a explosão, como a ocorrida; / mesmo quando é a explosão / como a de há pouco, franzina; / mesmo quando é a explosão / de uma vida severina'.
Personagens
Além do mestre carpinteiro que representa a possibilidade de esperança na vida através da própria vida se fazendo e refazendo, o protagonista da obra, seu personagem modelar de quem o mestre constitui a 'outra face' é o retirante personificado por Severino. Vamos, então, analisá-lo.
No primeiro trecho, ele se apresenta aos leitores - pessoas letradas e pertencentes ao mundo urbano - chamando-as de 'Vossa Senhorias' e inicialmente procurando distinguir-se enquanto indivíduo.
Para fazê-lo, detalha ao máximo o seu nome - 'é o Severino / da Maria do Zacarias, / lá da Serra da Costela, / limites da Paraíba'. Entretanto, isso ainda diz pouco: 'Se ao menos mais cinco havia / com o nome de Severino / filhos de tantas Marias / Mulheres de outros tantos, / já finados, Zacarias, / vivendo na mesma Serra / magra e ossuda em que eu vivia'.
Neste trecho que inicia o auto, um de seus eixos temáticos fundamentais pode ser notado com facilidade: o anonimato de uma gente cuja vida só tem a morte como horizonte - 'E se somos Severinos / iguais em tudo na vida, / morremos de morte igual, / mesma morte severina, / que é a morte de quem se morre / de velhice antes dos trinta, / de emboscada antes dos vinte, / de fome um pouco por dia / de fraqueza e de doença / é que a morte severina / ataca em qualquer idade / e até gente não nascida'.
Repare que a pluralização do nome próprio Severino transforma-o em nome comum, nome que simboliza a violência e a miséria de vidas tão iguais quanto as mortes... 'esta morte severina'.
Agora, a palavra torna-se um adjetivo que caracteriza a precariedade da existência dos seres oprimidos pela seca e pelo conservadorismo de um sistema sócio-econômico-político opressor, de estrutura anacronicamente reacionária [os severinos como descendentes do Coronel Zacarias, o 'mais antigo senhor desta sesmaria', e de mães chamadas Marias...]
A sina, o destino, a fatalidade de 'abrandar pedras', de 'tentar despertar terra sempre mais extinta' constituiu outro elemento temático que persiste ao longo de todo o texto, cujo conteúdo de denúncia social fica nítido no enredo, na caraterização do personagem principal e modelar do livro, Severino, e, como veremos, no tempos/espaço e na linguagem da obra.
Tempo / espaço
Os aspectos temporais espaciais de Morte e vida severina entrelaçam-se a características da obra estudadas em seu enredo e através de seu protagonista, Severino. Enquanto o tempo é indeterminado cronologicamente, dando-nos a situação da seca como único marcador, que parece eternizá-lo, o espaço possui um movimento de deslocamento mais simbólico que real, embora aconteça de fato.
Isto porque a travessia do retirante do Agreste para a Caatinga, da Caatinga para a Zona da Mata, da Zona da Mata para o Recife, não apenas não muda as suas perspectivas de vida, mas, ao contrário, apenas intensifica o acúmulo de mortes que o leva a pensar em jogar-se no rio e apressar a própria morte.
Assim, tanto tempo quanto o espaço intensificam o caráter de denúncia social do texto, o qual , pela simbologia da vida representada via nascimento de uma criança, e via significado desse nascimento de acordo com as palavras do mestre carpina, conjuga a denúncia de que reveste com um lirismo que não chega nem pretende chegar a seu redentor, reconfortante, mas que colore de tons substantivamente poéticos a possibilidade de esperanças presente em Morte e vida severina.
Linguagem
Conhecido como 'engenheiro da palavra' por sua poesia precisa, substantiva, elíptica, mais plástica que musical, João Cabral de Melo Neto surpreendeu alguns críticos ao conseguir conjugar tais características, que mantêm na obra que lemos, com outros recursos que o tornam mais 'legível' e consequentemente menos 'hermético'. Tais recursos estão vivos na linguagem concisa mas fluída e permeada de expressões e musicalidade popular de Morte e vida severina, na sedução de sua leitura pelos fortes traços orais, pelas rimas e repetições que não enfraquecem, mas, ao contrário, intensificam a tensão dramática, e principalmente no lirismo que soletra a vida e a celebra, ao mesmo tempo em que denuncia de forma implacável os fatores que a impedem de expandir-se: a seca e os arbítrios, os desmandos, os responsáveis por ela e por suas consequências.
Vamos terminar este trabalho com a opinião de um estudioso e mais um fragmento do texto, para lermos, relermos e reconhecermos sua intensidade enquanto texto literário e enquanto peça teatral.
“A visão plástica [...] é tão predominante em João Cabral de Melo Neto que acarreta o quase amortecimento do lado musical [...]. Dessa forma, sua poesia pode parecer - ante uma tradição que tem timbrado em requintar o lado musical [e/ou rítmico e/ou fônico] - algumas vezes 'dura' aos menos avisados ou mesmo aos pseudo-avisados [...]. E não estranhará que tenha sido a consciência disso que o tenha levado, quando quer obter efeitos rítmicos mais definidos, aos metros tradicionais da redondilha e do romance. Mas a repulsa aos apoios fonéticos não necessários à sua visão poética é tal, que raríssimos são os casos de rimas, salvo as toantes, e estas são frequentes sobretudo como 'molde' ou 'fôrma' para a obtenção de uma certa fixidez poemática [...]. Chega à situação de um sábio que esgotou toda a teoria neutra de sua ciência, viu que por sua pretensa neutralidade era uma ciência a serviço, viu mais - que a serviço de uma causa que não era a da ciência mesma e se perguntou qual seria, pois, aquela ciência sincera, que se pudesse pôr a serviço do homem...” Antônio Houaiss, obra citada
- Severino, retirante,
deixa agora que lhe diga:
eu não sei bem a resposta
da pergunta que fazia,
se não vale mais saltar
fora da ponta e da vida;
nem conheço essa resposta,
se quer mesmo que lhe diga.
É difícil defender,
só com palavras, a vida,
ainda mais quando ela é
esta que vê, severina;
mas se responder não pude
à pergunta que fazia,
ela, a vida, a respondeu
com sua presença viva.
[Trecho 18 - o carpina fala o retirante que esteve de fora sem tomar parte me nada].