Compulsando-se os manuais amiúde encontrados na doutrina nacional o pesquisador se depara, inicialmente, com uma certa dificuldade, na medida em que na quase totalidade dessas obras não há um capítulo próprio no qual o "interesse público" seja tratado como efetivo princípio. Muito mais comum é, por exemplo, encontrar a expressão "supremacia do interesse público" como viga mestra sobre a qual se assenta o sistema jurídico-administrativo, consoante fizemos expressa referência no capítulo anterior. Perceber que o princípio do interesse público encontra-se inserido dentro desse contexto é o primeiro passo para começar a compreendê-lo na sua inteireza.
O simples fato do princípio do interesse público não ter sido objeto de catalogação expressa de parte do nosso legislador constituinte - que, ao construir a redação do artigo 37 da Constituição Federal, explicitou tão-somente os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência como sendo as premissas constitucionais regentes da Administração Pública - não quer dizer que ele não tenha sido contemplado. Muito antes pelo contrário, embora não haja referência específica, resta óbvio que sua adoção encontra implícita recepção em nosso ordenamento, assumindo, de igual parte, status constitucional, na medida em que, como vimos anteriormente, todas as ações adotadas pelo administrador público devem ter como motivação de fundo a obediência ao interesse da coletividade. Cumpre apresentar quais os suportes que autorizam nossa afirmação.
O próprio princípio da legalidade, que encabeça a relação das prescrições gerais e abstratas inscritas no mencionado art. 37 da nossa Lei Fundamental, ao estipular que o administrador tem sua vontade submetida à lei - dentro da ideia de "interesse público" - também tem o objetivo de atender o interesse da sociedade, tanto é que a "lei" caracteriza-se por ser uma prescrição geral, imperativa, impessoal e abstrata, um veículo em serviço da sociedade como um todo. Quer-se dizer, com isso, que o princípio da legalidade não está dissociado da ideia de atender ao interesse público, e nem poderia ser diferente.
Complementando tal ideia, cumpre aduzir que o princípio do interesse público não só subjaz o princípio da legalidade como, de certo modo, guarda estreita afinidade com os demais princípios que informam a atuação da Administração Pública em geral. A um, porque ao sustentarmos que o princípio da legalidade conforta interesse público, por conseguinte, estamos trabalhando com a ideia de que a noção de "interesse público" alcança os demais princípios, justamente pelo fato da legalidade estrita ter ampla abrangência e, consequentemente, estar francamente disseminada no âmbito do nosso regime jurídico-administrativo. Tanto é que a doutrina é tranquila ao afirmar que, sob a rubrica da "legalidade", pode-se enfeixar todos os demais princípios peculiares ao direito administrativo, sejam eles explícitos ou implícitos. A dois, porque, independentemente da aproximação do interesse público com a noção que se tenha de legalidade, aquele também encontra em seu interior amplo espectro de ação, abrangendo e tangenciando não só reflexa como diretamente os demais princípios, sendo indissociável para a compreensão e dimensionamento da impessoalidade, da moralidade e da publicidade, preceitos que originariamente foram impostos ao administrador público pela Carta Federal. Nesse aspecto não há como dizer o contrário.
Tanto é que, como vimos a pouco, o regime jurídico-administrativo tem como um de seus assentos a supremacia do interesse público, circunstância que, por si só, já seria suficiente para demonstrar que o nosso sistema alberga, com todas as luzes, o princípio do interesse público - ainda que não faça expressa referência e que, a priori, tal conclusão não seja lançada de plano. Percebe-se assim que, aos poucos, gradualmente, estamos situando o "interesse público" no nosso sistema de direito positivo.
RUI CIRNE LIMA1, na sua notável obra Princípios do Direito Administrativo, de certa forma, alberga o interesse público sob denominação outra, qual seja, o princípio de utilidade pública que, segundo sustenta, dá-nos, por assim dizer, o traço essencial do Direito Administrativo. A utilidade pública é a finalidade própria da administração pública, enquanto provê à segurança do Estado, à manutenção da ordem pública e à satisfação de todas as necessidades da sociedade. Malgrado a correção das premissas, entendemos que ainda há de ser buscada uma explicação mais esclarecedora. E certamente há de haver uma que nos agrade.
A dificuldade em definir o que seja "interesse público", longe de representar abstração e esvaziamento semântico, é decorrência não só da amplitude do seu campo de ação, mas, sobretudo, fruto da errônea percepção, não raras vezes idealizada, de que é possível encontrar uma noção fixa e imutável para a definição dos termos. Especialmente no que refere a este último aspecto, é de se ver que "interesse público" trata-se de um conceito indeterminado, que necessariamente precisa ser contextualizado. Contudo, consoante o ensinamento de Maria Lúcia Valle de Figueiredo, isto não implica em dizer que ele não detenha um núcleo mínimo de compreensão, sendo que sua conotação e denotação deverão ser extraídas das normas dos princípios informadores do ordenamento. Conclui a eminente jurista no sentido de que seu conceito será dado à luz do instituto, que se examina, e do próprio sistema. Desse modo, já sabemos, de certa forma, onde procurar os elementos para a precisa definição do princípio do interesse público.
Prosseguindo no estudo do tema, cumpre abordar um aspecto fundamental. Aprioristicamente, quando falamos em interesse público, no objetivo de facilitar sua compreensão - e até mesmo por força da tradição romanística em diferenciar o direito público do direito privado, dicotomia cada vez mais ultrapassada - o imaginamos como residente num compartimento estanque e distanciando do interesse privado, o que, na preciosa lição de Celson Antônio de Mello, se constitui num rematado equívoco.
Isto porque, nas judiciosas ponderações do aludido doutrinador, consta que o interesse público - como o interesse do todo, nada mais é do que uma forma, um aspecto, uma função qualificada do interesse das partes, ou seja, não há como se conceber que o interesse público seja contraposto e antinômico ao interesse privado, caso assim fosse, teríamos que rever imediatamente nossa concepção do que seja a função administrativa. A vetusta ideia de que os indivíduos devem servir para o Estado encontra-se há muito superada, de modo que a concepção hodierna caminha no sentido de que é o ente estatal que deve atender e servir aos interesses da coletividade, sendo esta a verdadeira razão fundante do pacto social2. Tomamos de empréstimo o acerto e a correção das conclusões alinhavadas pelo ilustre doutrinador, no intuito de perquirir o seguinte: "Poderá haver um interesse público que seja discordante do inexistente de cada um dos membros da sociedade?". Decerto que não.
Cumpre arrematar, enfim, o conceito do que seja "interesse público". O interesse público, portanto, nada mais é do que uma dimensão, uma determinada expressão dos direitos individuais, vista sob um prisma coletivo. O aludido princípio obtém sua melhor definição mais uma vez por Celson Antônio de Mello3, que o cunhou como sendo o interesse resultante do conjunto de interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua qualidade de membros da Sociedade e pelos simples fato de o serem.
Malgrado a separação entre direito público e privado perdure até hoje, é de muito mais por razões meramente didáticas, cumpre observar que tal delimitação não encerra uma segregação absoluta e definitiva dos objetos enquadrados numa ou noutra categoria, razão pela qual devemos conceber o interesse público como resultado de uma simbiose entre o interesse particular ou pessoal qualificadamente considerado e as prerrogativas da Administração Pública. Embora possamos decompô-los, até mesmo para melhor discernir a função pública da atividade privada, o fundamental é que não percamos a compreensão do que seja o todo.
O que ocorre, e isso sim é preciso deixar bem claro, é que nem sempre a Administração atua em estrita obediência à finalidade pública e, consequentemente, em não o fazendo, desatende o interesse público. Embora goze de presunção de legitimidade, o simples fato de determinado ato administrativo ser concebido no ente estatal não quer dizer que, fatalmente, aconteça o que acontecer, ele irá realizar interesse público. Isto porque existe uma subdivisão importante, que fala em interesses primários e secundários da Administração, cujo exame, agora, se mostra oportuno.
Os interesses primários englobam a Administração Pública no real e genuíno exercício do seu ofício, como ente imparcial, enquanto que os interesses secundários são decorrência do desempenho das suas atividades de gestão, desta feita como certa parcialidade, não objetivando fins tão nobres, mas, isto sim, a própria sobrevivência ou higidez dos cofres públicos, ainda que isto potencialize afronta à lei.
Em mais uma primorosa lição de Celson Antônio de Mello4, cuja remissão é mais uma vez inevitável, superada a questão de considerar o interesse público como um interesse exclusivo do Estado, evita-se a errônea identificação do interesse público como sendo aquele externado pela entidade que representa o Estado, consistente em qualquer das pessoas jurídicas de direito público interno, na medida em que é imperioso reconhecer que, tal qual acontece com os cidadãos, existem meras individualidades que encarnam no Estado enquanto pessoa e, portanto, assemelham-se aos interesses de qualquer outro sujeito - com a diferença fundamental que, enquanto o particular pode fazer seu interesse individual, o Estado só poderá promover a defesa dos seus interesses particulares ("interesse secundário") quando estes não conflitarem com o interesse público propriamente dito ("interesse primário").
Na nossa modesta compreensão, digerindo as inteligentes conclusões encetadas pelo renomado doutrinador, a mesma distância que separa a "administração pública" do "governo", também afasta o "interesse primário" do "interesse secundário". Isto implica dizer que o interesse primário está mais para a administração publica, assim como o interesse secundário está mais para o governo, guardadas as devidas proporções. Enquanto aquele visa a atender as necessidades coletivas propriamente consideradas, este assume cunho político e, de certa forma, visa a atender os interesses relacionados à gestão do próprio ente estatal.
Referências
1. LIMA, RUI CIRNE. Princípios do Direito Administrativo. 5ª edição. São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 1982, p. 15/16.
2. Como bem salienta MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, em sua obra anteriormente citada (p. 69), "O Direito deixou de ser apenas instrumento de garantia dos direitos do indivíduo e passou a ser visto como meio para consecução da justiça social, do bem comum, do bem estar coletivo.
3. Obra citada, p. 59.
4. Obra citada, p. 63.