Seria muito proveitoso para o conjunto da sociedade se parte das celebridades tivessem uma consciência mais profunda do papel que ocupam na formação de costumes, especialmente num país como o nosso que tem pouca leitura, e, por isso mesmo, pouca criticidade. Uma sociedade assim tem grande parcela de sua população procurando modelos de comportamento e de visão de mundo, e os encontram nas celebridades que circulam nos mais diversos meios de comunicação, sejam atores e atrizes, cantores, jogadores de futebol, enfim , todos que se destacam em sua arte, posto que o circo da Roma antiga até hoje ocupa um espaço simbólico muito claro na vida das comunidades.
Para o bem ou para o mal, as celebridades galvanizam em torno de si desejos e anseios de forma que tudo que fazem ou falam repercute imediatamente na vida das pessoas. Foi assim com o depoimento de Xuxa no último domingo à noite no programa Fantástico, da Rede Globo, quando ela relatou ter sido vítima de abuso sexual até os 13 anos de idade.
O abuso sexual de crianças é, por mais absurdo que possa parecer, um evento relativamente comum. Acontece que no final do século passado, e, sobretudo com o avanço das psicoterapias, houve um crescimento na cultura confessional fazendo vir à tona essa tragédia que se abate sobre a sociedade, seja no seio das famílias, nas igrejas ou escolas, atraindo o interesse crescente da mídia, no cinema, televisão, jornais e novelas, o que tem chamado cada vez mais a atenção do público de uma forma geral. Trata-se na verdade de um reconhecimento tardio de um acontecimento relativamente frequente que é a ocorrência de abuso sexual na infância, uma preocupação que se manifesta concomitante ao desejo da sociedade em entender e minorar os efeitos traumáticos de tais abusos.
O emergir desses depoimentos de abuso sexual infantil, fez surgir um espaço socialmente relevante de preocupação, instigando a busca por parte da sociedade como um todo e das ciências psicológicas e médicas em particular, quanto às formas de tratar os efeitos individuais de abuso sexual infantil. Por mais que seja um drama coletivo, a violência sexual que vitima as crianças atinge destrutivamente cada uma delas que passou ou passa por isso, tornando-as sobreviventes de uma tragédia.
Ao trazer sua história pessoal de abuso à tona Xuxa contribui para essa discussão, sobretudo por revelar a ambivalência destrutiva que comumente domina os maiores pesadelos das vítimas. Em todos os casos que tive oportunidade de atender até hoje em meu consultório de psicologia clínica essas pessoas sentem-se culpadas e vítimas ao mesmo tempo, assim como Xuxa ainda hoje se sente.
É bom lembrar que apesar de ser uma tragédia pessoal, ela é alimentada por uma visão socialmente construída de impunidade e de machismo cínico. E, embora haja também um número grande de meninos vítimas de abuso sexual infantil, a grande maioria das vítimas são meninas e comumente os abusadores são majoritariamente homens.
O medo das ameaças dos abusadores, o sentimento ambivalente em torno do abuso, o receio de destruir a família, de ver sua dolorida tragédia particular tornar-se pública, enfim a soma de todos esses medos geram um silêncio destrutivo que só se rompe com uma crise emocional ou com uma somatização através de uma doença, pois de todas as formas a mente tenta extirpar esse mal que tem um impacto no funcionamento social e interpessoal, especialmente quando se trata de incesto, pois a criança é duplamente vitimizada. Ela é vítima do abuso em si e da traição afetiva daquele que deveria cuidar e proteger, o que termina por gerar um conflito psíquico de graves consequências, reverberando ao longo dos anos como uma espécie de síndrome pós-abuso na vida adulta.
Ao declarar publicamente os abusos que sofreu, Xuxa encoraja outras vítimas a fazer o mesmo, ao tempo em que revela à sociedade o quanto isso é comum, e quem sabe assim se trave uma luta mais consistente contra essa tragédia na vida de muitas crianças e adultos traumatizados. Além disso, seu depoimento contribui ao demonstrar que é possível vencer e não ser eternamente escravo da considerável sobreposição entre o abuso físico, emocional e sexual, mesmo que nunca se esqueça do que aconteceu...
Como palestrante atua nas áreas de recursos humanos, motivacional, liderança, perspectivas da educação, relações interpessoais, desenvolvimento emocional, gestão de pessoas, serviço público, cultura de paz, entre outros.