[Adélia Prado]
A Autora
Adélia Prado (Divinópolis MG, 1935) formou-se bacharel em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Divinópolis em 1970. Seu primeiro livro de poesia, Bagagem, foi publicado em 1976. Em 1978, seria lançado O Coração Disparado, com o qual ganhou o Prêmio Jabuti de Poesia. Publicou, entre 1979 e 1999, os romances Solte os Cachorros, Cacos para um Vitral, Os Componentes da Banda, O Homem da Mão Seca e Manuscritos de Felipa. Em 1999, os quatro primeiros romances foram publicados em Prosa Reunida.
Fazem parte de sua obra poética Terra de Santa Cruz (1981), O Pelicano (1987), A Faca no Peito (1988), Poesia Reunida (1991) e Oráculos de Maio (1999). Na poesia de Adélia Prado, de tendência contemporânea, são frequentes os elementos que remetem à paisagem e ao cotidiano do interior de Minas Gerais. Há também uma abordagem bastante inovadora da sexualidade feminina.
Considerada a princípio como a dona de casa que fazia poemas, a mãe de família religiosa que traduzia em versos seu cotidiano, Adélia mostra ao longo do tempo toda a força de sua persona. Sua relação com a religião que professa, ou com a sociedade em que vive, não é nada inocente, ou seja, ela não é mera tradutora de sentimentos femininos apáticos e submissos, mas é uma mulher questionadora de seu tempo, capaz de profundas ironias por sob um calmo olhar de mineira.
Adélia reage com a poesia, como reagem as teólogas feministas, como reagem muitas mulheres sem o saber, às imagens de um passado escrito em parte pela religião católica e que ainda exerce sua influência, de um modo ou de outro.
Através do elemento erótico religioso em sua poesia, Adélia entra em contato com o feminino reprimido da psique, sem afastar-se da religião mesma que o condenou, mas reestruturando a imagem católica de mulheres assexuadas, para outra, dona de sua capacidade de sentir e expressar o desejo sexual. Não por caso, ela repete que a salvação está na poesia.
É ali,através das palavras transmutadas em imagens, em cenas, em metáforas, em sonhos, desejos e visões, que uma realização acontece.
Características
1. O títulodo livro alude, de forma conotativa, ao corpo e seus desejos.
2. Capta com sutileza, nos versos da poetisa mineira, não só a angústia das mulheres reprimidas pela cultura e pela religião, como sua capacidade de resistir.
3. As marcas do discurso adeliano, integradoras entre o humano e o divino e entre o homem e a mulher, apontam para uma nova relação com o corpo e com o prazer, superadora de estratégias de sujeição patriarcal e de limitações deformadas da moral sexual cristã.
4. Adélia Prado nos traz uma positivação do erotismo, através do mesmo caminho utilizado para a sua negação no mundo judaico-cristão: o caminho da religião,enfatizando o que as instituições cristãs sempre se empenharam em ocultar: a santidade da transgressão erótica.
Ela escreveu:
Festa do corpo de Deus
Como um tumor maduro
a poesia pulsa dolorosa,
anunciando a paixão.
"ó crux ave, spes única
Ó passiones tem pore".
Jesus tem um par de nádegas!
Mais que Javé na montanha
esta revelação me prostra.
Ó mistério, mistério,
suspenso no madeiro
o corpo humano de Deus.(...)
Nisto consiste o crime,
fotografar uma mulher gozando
e dizer: eis a face do pecado.
Por séculos e séculos
os demônios porfiaram
em nos cegar com este embuste.
E teu corpo na cruz, suspenso.
E teu corpo na cruz, sem panos:
olha pra mim.
Eu te adoro, ó salvador meu
que apaixonadamente me revelas
a inocência da carne.
Expondo- te como um fruto
nesta árvore de execração
o que dizes é amor,
amor do corpo, amor.5. O que é mais significativo no tocante à religião é o fato de o texto estar ligado a uma tradição tão milenar como é o cristianismo, porém,desligado de pregações religiosas impositivas ou moralistas, pois a sua poesia vai à fonte da história cristã e relata os elementos corporais e humanos! de Deus, chegando mesmo a tornar eróticas as relações com o divino como está em À soleira: "Não compreendo nada. Só vos desejo/ e meu desejo é como se miasse por Vós." (1991; 274).
6. O fazer literário, sua origem e o papel do poeta no mundo constituem também uma constante. Na sua obra, a poesia nasce da voz de Deus e o poeta é aquele que a transmite à humanidade. Sua meta poesia revela que ao poeta cabe o papel de servir a Deus, porque aquele materializa a palavra deste, que é a própria poesia.
7. Há, ainda, expressivamente registrados, o resgate dos acontecimentos mais íntimos do cotidiano.
Para exemplificar os poemas do cotidiano optamos por um bem conhecido. Ele diz:
Casamento
Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como 'este foi difícil'
'prateou no ar dando rabanadas'
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.
No poema existe a associação da relação homem-mulher com um ritual religioso. Existe o pescador, tal qual os discípulos de Jesus; existe o peixe, tal qual o símbolo dos cristãos. A cozinha é o local da liturgia, onde se faz o silêncio para acolher a harmonia entre homem e mulher. O silêncio que é como um rio profundo, ou seja, pode fertilizar a relação como o Nilo fertiliza as terras do Egito, ou, por outro lado, pode ser um desafio que une e separa duas margens diferentes, dois seres diferentes. Homem e mulher no poema estão em comunhão, não em fusão. Estão como duas margens do rio, como duas possibilidades permeadas de sentimento fluido. O fruto dessa comunhão é tratado com veneração: o peixe. Peixe-homem, peixe-mulher, noivo e noiva, o sexo na cama será ápice do ritual. Coisas prateadas espocam.
Trottoir
Minhas fantasias eróticas, sei agora,
eram fantasias do céu.
Eu pensava que sexo era a noite inteira
E só de manhãzinha os corpos despediam-se.
Para mim veio muito tarde
a revelação de que não somos anjos.
O rei tem uma paixão - dizem à boca pequena -
regozijo-me imaginando sua voz,
sua mão desvencilhando da fronte da pesada coroa:
Vem cá, há muito tempo não vejo uns olhos castanhos,
tenho estado em guerras..."
O rei dasataviado,
com o seu sexo eriçável mas contido,
pertinaz como eu em produzir com voz,
mão e olhos quase estáticos, um vinho,
um sumo roxo, acre, meio doce,
embriaguez de um passeio entre as estrelas.
À voz apaixonada mais inclino os ouvidos,
aos pulsares, buracos negros no peito,
rápidos desmaios,
onde esta coisa pagã aparece luminescente:
com ervas de folhas redondinhas
um negro faz comida à beira do precipício.
À beira do sono, à beira do que não explico
brilha uma luz. E de afoita esperança
o salto do meu sapato no meio-fio
bate que bate.
O espírito das línguas
A propósito de músicos, ginastas, coreógrafos
digo na minha língua:
PUXAVIDA!VAI SER ARTISTA ASSIM NO
INFERNO!
É português como se fora russo.
Descuidada de que me entendam ou não,
falo as palavras,
para mim também e primeiro,
incompreensíveis.
As artes falam humanês,
também as caras dos homens
escrevem o mesmo código.
O que é PUXAVIDA
VAISER ARTISTA ASSIM NO INFERNO?
Só expressam as línguas nas clareiras
que o choque de uma palavra abre na outra.
Na Bulgária, certamente traduz-se PUXAVIDA
por BERIMBAU! FILIGRANAS DE RENDA!
Compreender o que se fala
é esbarrar na sem-caráter,
inominável, corisca poesia.
O eu poético fala do seu encantamento frente a certas manifestações artísticas, a música, a ginástica, a coreografia; mais precisamente, mostra seu encanto diante do homem que as realiza. Seja músico, ginasta, coreógrafo é, para o eu, artista - o tipo de arte não importa. Como veremos, o que impulsiona a arte é que encanta o eu-lírico.
Esse encanto vem expresso por meio de duas expressões cristalizadas da língua portuguesa, as quais funcionam como espécies de interjeições: PUXAVIDA! e VAI SER ARTISTA ASSIM NO INFERNO. O eu manifesta sua emoção diante da arte e do homem que a permite existir. Esse recurso, além de expressar o envolvimento afetivo do eu, faz com que o poema apresente uma tonalidade de discurso oral. O leitor fica mais próximo do eu-lírico e o caráter de conversa se acentua.
Mas esses clichês soam de um modo inusitado para o eu, que faz com que o leitor também prove do sentimento de estranheza diante das frases pronunciadas. É português como se fora russo. O que é tão desgastado na língua portuguesa, de repente, é tido como se fosse uma língua estrangeira. A partir daí, o leitor, que compartilha da mesma língua do eu (e este é mais um índice da proximidade do leitor), re-olha as expressões e reconhece a estranheza de seu uso. O que é puxa vida? Como usamos a palavra inferno, com todas as suas conotações negativas em uma expressão que revela um estado tão sublime do espírito? De fato, estas estranhezas fazem com que o leitor também sinta o português como uma língua estrangeira, bastante distante, como o russo.
No sexto verso, o eu se apresenta como um eu feminino: "Descuidada de que me entendam ou não." É uma mulher que conversa com o leitor. A partir desse verso, o discurso assume um tom de confissão, o eu feminino parece confiar-lhe um segredo. Do sexto ao nono verso, há uma expansão do já expresso, o discurso desenrola-se progressivamente.
"Descuidada de que me entendam ou não, falo as palavras, para mim também e primeiro, incompreensíveis." Da descrição de um comportamento específico, sua reação diante da arte, o eu confessa, de maneira generalizante, como usa a palavra: descuidada de que a entendam ou não. Do mesmo modo que exclama PUXAVIDA! VAI SER ARTISTA ASSIM NO INFERNO! Diante da arte, guiada apenas pela emoção, num ímpeto do espírito que se preenche com o belo. Assim, apresenta o seu poema, também, como a expressão de um sentimento que precede qualquer esforço da razão. A forma mesma do texto corrobora para esta leitura: os versos brancos, livres, o tom coloquial, próximo da língua falada, numa linguagem que flui.
No segundo momento, notamos uma mudança no tom do discurso, que se torna mais reflexivo. Não se trata mais de 1 uma confissão. Já não encontramos os marcadores de primeira pessoa. Predominam as frases assertivas, como se o eu-lírico fosse proferindo verdades, conclusões extraídas da primeira parte do poema, que vai se tornando mais clara, à medida que I prosseguimos na leitura.
... as artes falam humanês, / também as caras dos homens / escrevem o mesmo código. / O que é PUXA VIDA / VAISER ARTISTA ASSIM NO INFERNO? / Só expressam as línguas nas clareiras / que o choque de uma palavra abre na outra. / Na Bulgária, certamente traduz-se PUXA I VIDA / por: BERIMBAU! FILIGRANAS DE RENDA! / Compreender o que se fala / é esbarrar na sem-caráter, / inominável, corisca poesia.
O décimo verso introduz uma afirmação que retoma toda a primeira parte do poema. Humanês, um neologismo, indica uma língua universal, falada - e compreendida - por todo ser humano. Este código contrasta com o português e o russo, no quinto verso, línguas só faladas por grupos limitados de pessoas e que, como o eu - lírico aponta, incompreendidas pelos seus próprios falantes. Essa mesma língua universal escrevesse pelos traços dos rostos do homem - aliás, caras, numa linguagem informal que preserva o tom coloquial do poema - refletindo o que lhe é interno.
Nesse tom reflexivo do segundo momento, os versos 17 e 18 surgem de modo inusitado, causando estranheza no leitor, que busca um significado para uma frase que, num primeiro olhar, encerra uma ideia impossível. Na Bulgária, certamente traduz-se PUXA VIDA/ por BERIMBAU! FILIGRANAS DE RENDA! Como BERIMBAU FILIGRANAS DE RENDA poderia equivaler, em Búlgaro, a PUXAVIDA? Berimbau é um instrumento musical que acompanha a capoeira.
Com isso, remontamos ao primeiro verso – A propósito de músicos, ginastas, coreógrafos. A palavra berimbau abarca as ideias destas três palavras, pois presentifica uma dança de capoeira, que envolve música, ginástica e coreografia. A arte está presente em toda a sentença, já que filigranas de renda também são peças de artes criadas pelo homem.
Dessa maneira, BERIMBAU! FILIGRANAS DE RENDA!, com exclamação e letras maiúsculas, refletem o mesmo encantamento expresso por PUXAVIDA!, no terceiro verso, exteriorizam uma emoção que é universal, do homem que se encanta com o belo, o novo, não importa sua língua ou nacionalidade.
O espírito é que comunica através da língua, e não a língua por si. Para compreender, deve-se atravessar a superfície das palavras e perceber o espírito que Ihes confere vida.
O poema termina com mais uma asserção, que sintetiza todo o resto: Compreender o que se fala / é esbarrar na sem-caráter, / inomináve, corisca poesia. Dessa forma, o eu conclui suas considerações sobre língua e arte, que convergem em poesia. Esta palavra vem determinada por uma sequência de adjetivos e acaba por resignificar todo o poema. É preciso que o leitor ultrapasse o sentido literal das palavras para compreendê-las.