I- O Autor:
Graciliano Ramos [1892-1953] pode ser considerado um dos mestres do Regionalismo. Suas obras passam-se no NE do Brasil e falam do povo nordestino, da seca, da realidade enfim, com uma linguagem direta e típica da região. Apesar de também ter sido contista e cronista, é como romancista que se destaca. Graciliano Ramos nasceu no interior do estado do Alagoas, mas sua família se mudou várias vezes, peregrinando pelo interior do Nordeste. Mais tarde mudou-se para o RJ e depois de volta a Palmeira dos Índios [AL], cidade onde realizou seus estudos. Lá casou, estabeleceu-se no comércio e chegou a ser prefeito da cidade. Foi nessa época que foi descoberto como romancista: escrevera também o relatório que um editor desconfiara tratar-se de um romancista de gaveta. Estava certo: Graciliano Ramos estava escrevendo havia anos seu primeiro romance, Caetés, com o qual estrearia em sua carreira literária aos 41 anos [relativamente tarde]. Na mesma época de publicação do livro ele completou São Bernardo, primeira obra da trilogia que é sua obra-prima e inclui Angústia e Vidas Secas. Em 1936 foi acusado de comunista e mandado para a prisão, onde foi humilhado e maltratado [o fruto disso seria o livro de memórias chamado Memórias do Cárcere]. Em 1945 ele realmente se filiou ao PC e chegou a visitar países além da Cortina de Ferro. Várias das obras de Graciliano Ramos já foram filmadas por consagrados diretores brasileiros.
II- Obra:
Angústia é a história de Luís da Silva, um tímido e solitário funcionário público, que vive num bairro distante e pobre, numa casa velha, cheia de ratos. Além de trabalhar o dia todo na repartição, à noite, para ganhar uns trocados, escreve textos sob encomenda para um jornal. Após trinta dias de cama, curando-se de uma enfermidade, causada por um abalo nervoso, se vê de pé, retornando ao trabalho e às atividades normais. Nesse processo, pelo fio da memória, resgata o passado, na tentativa de reconstruir o que havia ocorrido.
No longo trajeto do bonde, da repartição à sua casa, as sombras do cotidiano se arrastavam, misturando-se em sua mente, formando um novelo confuso. O dinheiro era pouco e estava com o aluguel atrasado. Com um poder doentio de auto-análise, Luís tinha consciência de que levava uma vida idiota e frustrante, desenvolvendo uma ojeriza, um asco aos outros e a si mesmo. Odiava o seu senhorio, como também Julião Tavares, sujeito gordo, eufórico, vermelho, eloquente e rico, que, sempre fingindo superioridade, insistia em conversar com Luís.
Voltou a ser criança na fazenda do avô, Trajano, grande latifundiário decadente, caduco e bêbado; da avó, sinhá Germana; do pai, Camilo Pereira da Silva, dono de uma preguiça atroz que só vivia lendo, deitado na rede. Dele, infelizmente, tinha herdado o gosto pelas letras. O pai morreu quando tinha catorze anos. Era um defunto grande, envolto em um lençol branco, manchado de sangue na região da cabeça; os pés descobertos eram imensos, ossudos e sujos, com unhas róseas. Essa morte forçou-o a sair de casa; encontrou-se novamente no quarto abafado da pensão sórdida na cidade; as idas ao cinema com a sobrinha de dona Aurora, a proprietária da pensão.
Não conseguia mais escrever, esses fantasmas familiares, frequentemente, vinham assombrá-lo. Um dia fez amizade com sua vizinha, Marina, moça vermelha, de olhos azuis e cabelos amarelos. Apaixonado, pediu-a em casamento. Como queria casar logo, deu-lhe todas suas economias para o enxoval. Nesse momento, entrou em cena Julião Tavares que, tendo tudo o que o outro não tinha, principalmente dinheiro e posição social, conquistou, facilmente, a leviana Marina que, sem dificuldades, se deixou seduzir, ignorando Luís completamente.
Este, humilhado e ludibriado, mergulhou no abismo interior da derrota, adquirindo impulsos mórbidos de morte. Um dia, Ivo, o mendigo que, às vezes, procurava Luís para uma cachacinha e um prato de comida, deixou um rolinho de corda sobre sua mesa, o que lhe despertou um horror incontrolável. Com medo, escondeu-o no seu bolso. Os ratos e os vizinhos dos lados faziam um barulho enorme, irritando-o.
Luís notou que Julião tinha deixado de visitar Marina. Com certeza, já tinha conseguido seu intento e estava em busca de carne e rosto novo. Abandonada, Marina não mais saía de casa, andava abatida e sem jeito. Cada vez mais conturbado por seus fantasmas, Luís passou a seguir Julião. Um certo dia, encontrou-o no café e, de sua mesa, imaginou-se estrangulando-o, com a corda do mendigo Ivo, que trazia no bolso. Outro dia, sentindo-se frágil, cheio de culpa e autonegação, se viu atrás de Marina, que entrava na casa de uma parteira. Esperou-a, bebendo cachaça, num bar de frente. Quando esta saiu, com os olhos fundos e pálida como um cadáver, seguiu-a. Ao alcançá-la, desgostoso, agrediu-a moralmente e cobrou-lhe atitudes.
Fazia tudo aquilo, por piedade, tinha muita pena de Marina. Depois de algumas investigações, Luís descobriu o arrabalde, onde Julião tinha uma nova aventura. Uma noite, protegido pela densa neblina, esperou-o à saída da casa. À medida que o seguia, atormentado pelas recordações, via Julião que ora sumia e ora surgia, flutuando no nevoeiro espesso. Indeciso quanto ao que fazer, continuava a perseguição. Julião parou para acender um cigarro, e Luís, apalpando a corda no bolso, sentia o sofrimento e humilhações vividas, cobrando-lhe compensação. Assim, num gesto rápido, saltou enlaçando o pescoço do rival que, desprevenidamente, acendia o cigarro; com toda sua força esticou a corda, estrangulando Julião, que, após debater-se, ali ficou, insignificante, 'coberto de folhas secas, amortalhado na neblina'. Uma imensa felicidade se apoderou de Luís, que se sentia forte; não era mais aquela pessoa sem importância, que se mexia pela vontade dos outros; todos os sofrimentos e humilhações viraram fumaça; era outro. No entanto, essa euforia durou pouco, logo sua mente começou a trabalhar, angustiando-o; um imenso pavor e desespero tomaram conta de todo seu corpo que, temia ser descoberto.
Completamente transtornado, conseguiu chegar em casa, onde acabou com uma garrafa de cachaça e dormiu. Na manhã seguinte, sentindo-se doente, não foi trabalhar. Procurou em sua roupa marcas que o pudessem comprometer, mandou a camisa para a lavadeira, picou toda a gravata e deitou-se, entregando-se, desvairada e descontroladamente aos fragmentos de lembranças, extremamente doente, transtornado, sufocado pela angústia.