O Inferno
Depois de sono intranquilo (viu só, Kafka?) o jovem Dante se vê diante de una selva oscura, uma antessala do inferno. São trinta e três cantos, decassílabos, esta primeira parte, assim como nas demais : "Purgatório" e "Paraíso".
(...) Como entrei, não sei
era cheio de sono aquele instante
em que da estrada real me desviei [ canto I ] – trad. Cristiano Martins
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Contar não posso como tinha entrado
Tanto o sono os sentidos me tomara
quando hei o bom caminho abandonado [ canto I ] trad. João Pedro Xavier Pinheiro
Quem ajudará o jovem a sair de tal empreitada é Virgílio [sec I a.C.], poeta latino, autor de "Eneida", cujos versos contam história de Roma.
A tal selva poderia ser a representação dos vícios e pecados em que se meteu o homem, em meio a vida. Nos primeiros versos, o leitor fica sabendo que uma pantera, uma loba e um leão impediram novo caminho a Dante, obrigando-o a adentrar pela selva, então acompanhado do experiente poeta latino.
"Convém fazeres uma nova viagem"
disse-me então, ao ver-me soluçando,
"e escaparás deste lugar selvagem" [ canto I ] – trad C.Martins.
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Respondeu, do meu pranto condoído
"te convém outra rota de ora avante
Para o lugar selvagem ser vencido" [ canto I ] trad J.P.X.Pinheiro.
No canto II percebe-se que Beatriz, alma beata e pura, aparece e pede a Virgílio que siga com Dante, protegendo-o.
Convencido pelo autor de "Eneida" e pela visão da amada, Dante segue viagem. A dupla então percorre nove círculos, inferno a dentro, até encontrar o próprio Dite (Lúcifer), com suas três faces e, através de seu próprio corpo, conseguem chegar até a terra.
O "inferno" é narrativa de caráter gótico, apesar da presença do humanismo na nítida homenagem ao paganismo, ainda no canto IV, quando, ao entrar no primeiro dos nove círculos do inferno, a dupla se depara com o limbo e vê grandes nomes da filosofia e literatura, como Homero e Sócrates, dentre outros. Dante fica sabendo que ali mora seu guia.
Assim reunida a bela escola e boa
eu vi do mestre altíssimo canto,
que sobre os outros, como águia, revoa [ canto IV ] trad C.M.
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A bela escola assim vi reunida
Do Mestre egrégio do sublime canto,
Águia em seu vôo além dos mais erguida [ canto IV ] trad. J.P.X.P.
Ao longo da jornada, centauros, rios de fogo, hereges, blasfemos, minotauro, poços fumegantes, agonia, dor, tudo que signifique sofrimento e punição aparece diante os olhos por vezes assustados do jovem poeta florentino. Nesse meio, revê inimigos, militares, traidores, além de figuras da história política e religiosa de sua cidade e da Itália em geral.
Interessantes os últimos episódios da dupla, no intuito de vencer os círculos do inferno : na borda final do sétimo círculo, Virgílio pede ajuda a Gérion, uma besta, metade homem, metade réptil, com cauda de serpente (viperina). Montados na fera, os poetas conseguem alcançar o oitavo círculo.
E pois alcei ao dorso da desgraça
Aflito, eu disse, mas a voz não creio
tivesse soado exata : "eia, me abraça!" [canto XVII] trad C.M.
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Já sobre a espalda do animal cruento,
Quero ao vate gritar: "Senhor, me abraça!"
A voz, porém, não corresponde ao intento. [idem] trad J.P.X.P.
O caráter gótico cobre praticamente todos os versos e deixa Dante sempre dependente do medo, quase nada aprende com Virgílio, pelo menos neste inferno. O poetastro que mora no limbo se mostra condescendente e salva o jovem escritor de ser sugado pelo horror, sempre deixando claro ter pacto com o destino, uma vez que a via de Dante seria mesmo passar pelos outros círculos, até o paraíso.