Machado de Assis é sutil. Sua ironia, segundo Candido, é refinada tanto quanto requintada, isso porque, enquanto Machado faz a sua crítica utilizando narrativas, apenas os mais conscientes da condição humana são capazes de entendê-lo.
O enredo da obra Missa do galo é simples. Nogueira, em idade adulta, decide contar um fato obscuro de sua adolescência. A estória então se inicia como o narrador esperando pelo vizinho para ir a missa do galo, já que nunca fora à uma na corte.
Enquanto espera, Nogueira lê a obra "Os três mosqueteiros". Conceição, a senhora casada que abriga Nogueira, sobrinho de seu marido, em sua casa, se aproxima em altas horas da noite e conversa com o Narrador-personagem (Nogueira). Por fim, o vizinho chega e o protagonista vai a festa.
A estória parece corriqueira, mas Machado a trata de tal forma que os traços nítidos dos fatos ficam ofuscados pelo viés do narrador-personagem tanto quanto pelo julgamento do leitor.
No inicio, através de uma prolepse inicial, o narrador diz "Nunca pude entender..." mostrando que aquilo que aconteceu há tanto tempo, ainda é motivo de reflexão até a sua maturidade. E é exatamente isso que faz com que o leitor se interesse pela averiguação de um caso e descobrir um pouco mais de si mesmo.
Então, durante a narrativa muitos são os detalhes que confundem a cabeça de Nogueira e ainda mais a do leitor quando a pergunta que se abstrai é "tentou Conceição seduzir o sobrinho de seu marido?"
Por exemplo, Conceição já deveria estar dormindo, mas o que fazia ela, em altas horas acordada, somente com o garoto? E por que tanta preocupação em distrair (ou fazer companhia) ao personagem? Alem disso, há uma preocupação excessiva dela em não acordar a mãe dela com o volume da conversa.
As vestes dela também denunciam algo pois, em um dado momento da conversa, o braço dela deixa-se desnudar (algo incomum para a época e um tanto quanto sensual), e ainda, quando conversam sobre insônia, a resposta da senhora é suspeita já que não concorda quando Nogueira pergunta se ela estava com insônia naquela noite.
Ou ainda é possível que ela queira se vingar do marido que a trai.
Entretanto, nada disso é certeza. E o que é exposto na obra pode não passar de coincidência, acaso ou acidente.
Curioso é que não há uma maneira de analisar esse ato e descobrir a resposta da pergunta feita a partir das ciências e teorias emergentes na época como o positivismo pois a resposta seria a mesma: inconclusiva.
E dessa maneira, a única pessoa que pode concluir alguma coisa é o leitor. A partir do que cada um viveu, do que cada um experimentou, será possível uma leitura diferente pois Conceição deve passar, antes, pelo julgamento de cada leitor para se descobrir quais são as verdadeiras intenções dela.
Mas, julgá-la é correto? Durante a diegése, não se obtém informação ou intenção concreta uma vez que toda a obra é escrita a partir da visão de um narrador homodiegético com focalização interior e isso impede o narrador de se contar o que se passa dentro de Conceição.
O máximo que temos para julgá-la são as empregues que o protagonista tem a partir do que ele viveu.
Então a pergunta mudaria: Pode se confiar em um narrador-personagem que nada mais sabemos alem do que ele nos conta? Nada se sabe do narrador... nenhuma confirmação se ele é bom ou mau,nem uma ficha de antecedentes criminais...é certo confiar tão facilmente assim nele?
Ou ainda, o senso critico e a percepção de Nogueira estava sóbrio? Não estaria ele inebriado pelo Espírito romântico contido em "Os três mosqueteiros" que lia já que, de início, julgara Conceição uma moca de traços romântico?
Ou ainda, a lembrança do fato não poderia estar cheia de saudosismo e o fato ficou torto?
Também deve-se desconfiar de suas intenções: No inicio da obra a única descrição que Nogueira oferece de Conceição 'é de que ela é uma mulher simpática, "Nem bonita, nem feia". E no final da obra, sua visão muda, e a moca se torna uma figura sedutora e provocante.
Durante toda a conversa, o personagem-narrador se esforça para ter muitos assuntos, não estaria ele, com isso, "pagando para ver onde tudo isso iria dar?".
No final, o vizinho aparece para levá-lo à festa. No dia seguinte, os dois agem como se nada tivesse ocorrido na noite anterior. Seria um pacto de silencio sobre o ocorrido na noite anterior?
O que, de fato, ocorreu? Essas e outras perguntas sempre ficarão sem resposta, talvez, nem mesmo Machado de Assis as soubessem.
A sensação que se tem é que, ao final da obra, o leitor se cansa de tentar descobrir o que de fato ocorreu devido aos muitos vieses e permite que a sua consciência divague pelos caminhos que a narrativa o leva.
Todos os preconceitos, conceitos e verdades são postos à mesa para que se possa modificar alguns, envergonhar-se de outros, e ainda, mudar certas verdades pessoais.
O que resta a fazer é deleitar se com a narrativa de coração e render a mente a Machado.