“Se tudo que você sabe fazer é representar no amor,
você está fatalmente se preenchendo de vazio e dor”
(BOB HOFFMAN).
O enamoramento, na opinião de Gikovate (1998), surge por uma dada pessoa, porque ela parece corresponder ao pedaço que falta ao sujeito. Diria que ocorre também pela aceitação da pessoa, por aquilo que se aprecia, quando a atenção do outro parece sempre incansavelmente receptiva a sua comunicação ou comunhão. Isso se transforma em suporte para as emoções, sensações e subjetividades mútuas. Segundo Cyrulnik (2001), o estado amoroso tem duas vertentes, uma psicológica e outra biológica. A primeira consiste em uma representação íntima que se torna absolutamente hipersensível, incandescente, e a segunda modifica o campo da percepção sensorial. O contato físico aumenta a secreção das endorfinas, criando a impressão agradável de flutuação. Indiscutivelmente, “já nascemos ‘viciados’ em amor” (GIKOVATE, 1998, p.55). A consciência do tempo, a certeza da morte e a ausência do controle total das emoções fazem dessa vulnerabilidade do homo faber seu potencial humano. Certamente, “sem amor a humanidade não seria mais humana” (FURTADO, 2008, p.13), mas uma mescla monstruosa orientada pela fisiologia e pela articulação perversa da racionalidade. Isso, de alguma forma, já ocorre na atualidade como norteadora das interações, em especial, nos grandes centros urbanos: a indiferença e a impessoalidade.
Na compreensão de Hoffman (1996, p.18), “o amor não é apenas possível, ele é natural”, mas o comportamento compulsivo, auto-defensivo, tem como base o amor negativo, que usa e abusa da pessoa do outro. Hoffman (1996) denomina esse comportamento de Síndrome do Amor Negativo, que promove três aspectos básicos por meio dos quais o indivíduo reage: a) transcendência: julga-se capaz de transcender os traços negativos dos seus pais, porém são poucos os traços transcendidos até que a síndrome seja desenraizada; b) adoção: trata-se da aquisição total dos traços dos pais, o traço negativo “crítica”, por exemplo, torna uma pessoa autocrítica; c) conflito: é a ambiguidade de um traço, a aceitação e a rebelião contra o mesmo. Porém, no meu entender, consiste em um contrassenso considerar o amor como algo negativo. Todo e qualquer sentimento amoroso é sempre construtivo, em que “o eu que ama se expande doando-se ao objeto amado” (BAUMAN, 2004, p.24 - grifo do autor), ou seja, o amor consiste em uma relação em longo prazo, profundamente emocional, permanente, pelo menos na intenção, e mais ou menos exclusiva (GOLDMAN apud BROWN, 1990).
Na opinião de Bauman (2004, p.17), “não se pode aprender a amar, tal como não se pode aprender a morrer”, mas não há impossibilidade de uma educação lidar melhor com os afetos que não sejam agressivos. Quando uma criança se mostra rebelde, canaliza-se seu potencial de agressividade por meio dos esportes. Enfim, uns não sabem amar porque não receberam esse aprendizado da matriz original (mãe) ou de alguma figura substituta, outros porque foram feridos na sua vivência amorosa ou frustrados no seu genuíno desejo de amar.
O mais contraditório é que a fonte do amor que existe em cada indivíduo é inesgotável, entretanto se atribui que a felicidade esteja em um outro lugar, e assim se negligencia a relação amorosa e seus derivados. Há economia, mesquinhez, sovinice para compartilhar o amor seja ele ágape (perspectiva universal) ou individualizado (de foro íntimo, pessoal), de modo que até os amores romântico, paterno, filial e fraternal passaram a ser mercantilizados. Se uma pessoa dá mais amor, vai cobrar mais do parceiro ou do entorno. Em síntese, tem-se dificuldade de administrar esse sentimento que não seja com referência ao sistema de troca e venda. Se, para alguns, o bloqueio afetivo é crônico, para a maioria, de tão escondido ou encouraçado que se encontra, por vezes, parece que o dom amoroso está circunscrito em corações fossilizados.
O amor pode até ser simples no seu entendimento teórico, mas complexo na sua interatividade. Muitos acreditam que, para a fluidez do amor, basta que o diálogo seja instaurado. Na percepção de Freire-Maia (2008, p.87 - grifo do autor), “a coisa melhor do mundo ainda é o Amor, do qual brotam a justiça e a paz”, contudo o homem, na maioria das suas relações, mantém a vontade de dominar ou alguma outra modalidade com vistas ao poder. Assim, o amor pode até ser “a coisa melhor do mundo”, porém, por si só, não garante a harmonia das relações. Como afirma Conche (1998, p.19), “não há verdadeiro amor sem diálogo, um diálogo inspirado e conduzido pela busca do verdadeiro”.
Discutir a relação não é bastante, se não houver a legitima intenção do consenso, a ausência total do anseio de obter vantagem em detrimento dos sentimentos e das razões do outro. Porém, nas sociedades contemporâneas, os cidadãos adoeceram de tal modo, que ficou difícil cultivar o amor nas suas mais diversas e amplas formas de expressão. Por isso, alguns autores e muitos leigos julgam existir amor negativo ou doentio, mas, na verdade, o amor jamais tem conotação patológica. O sentimento amoroso é sempre construtivo, pautado na elevação dos indivíduos, não obstante pessoas cujo núcleo afetivo encontra-se chamuscado engendram vínculos que, mesmo contaminados e alimentados pelas neuroses, acreditam piamente que seja amor. Diante de tanta informação, individualismo e negação dos sentimentos, as gerações vindouras, decerto, terão a psicopatia como um padrão comportamental.
Segundo Schopenhauer (2004, p. 27), “com frequência vê-se um homem bem instruído, espirituoso e amável ser preterido por mulheres, em favor de outro feio, imbecil e rude”. A mulher que escolhe esse tipo geralmente pensa que a sua suposta superioridade seja o trunfo para lhe garantir a condição de objeto do amor. Esquece que o macho é detentor do poder fálico e de todas as regalias oferecidas pela sociedade. Assim, mesmo ligeiramente abaixo ou aquém do patamar econômico, intelectual etc., seu parceiro poderá não se sentir inferior, mas, se, por ventura, ele for tomado pelo complexo de inferioridade, caso não vislumbre nenhuma vantagem, em breve fugirá dessa trama. Por conseguinte, quando a mulher é deixada por esse parceiro menos qualificado, dói mais, porque, em tese, seria uma perda irrelevante. Paradoxalmente, torna-se mais corrosiva, porque foi largada por aquele, digamos, “lixo”. A rejeitada pode chegar à seguinte conclusão: “se até um tipinho assim a deixa, então sua pessoa não é nada interessante, não tem nem um atrativo ou um mínimo de valor”.
Provavelmente essa criatura teve receio de investir em pretendente do seu nível, achando que, devido ao seu intrínseco - porém inconsciente - sentimento de desvalorização, se não desse certo, sofreria menos: “é, ele era, realmente, muito superior a mim, portanto não o merecia”. A mulher tem dificuldade de diferenciar que o fato de ser deixada não está necessariamente relacionado ao poder econômico e/ou nível intelectual do parceiro, mas, muitas vezes, à sua própria autoestima. Tem um gozo nesse sofrimento que segue mais ou menos a “filosofia” de que “é melhor sofrer por abandono que encarar o vazio de não ter nada do que reclamar”. Apesar de que, esse sujeito não cai de paraquedas em sua vida. Há um chamado, uma aura que atrai a espécie mau caráter. Geralmente, o desencontro se dá no choque do encontro de um romântico, carente doador, de um lado, com um perverso, seco, racional aproveitador, do outro. Porém, mesmo que tudo pareça perdido, esse pivô da devastação sentimental não deve ser totalmente condenado. Na verdade, sua atuação apenas explicitou uma série de “buracos emocionais” que já existiam, em um contexto que oportuniza a essa “vítima” a chance do autoconhecimento como aprendizado.
De modo indubitável, “o gesto do abraço amoroso parece realizar, por um instante, para o sujeito, o sonho de união total com o ser amado” (BARTHES, 2003, p.7), mas isso, para alguns, pode parecer extremamente assustador, quando os leva a visualizar o compromisso afetivo como inerente à falta de liberdade. Bauman (apud SILVA, 2010) destaca que o desejo de amar e ser amado só pode se realizar na genuína disposição em comprometer a própria liberdade, para que a liberdade da pessoa amada não seja violada. No geral, as pessoas não têm maturidade para aceitar e conviver com os próprios sentimentos, muito menos com os que surgem na convivência dos dois universos, mesmo que a priori tenham sido os catalisadores da atração, por serem distintos ou semelhantes.
Na compreensão de Gikovate (1998, p.81), “não sofremos em virtude de fenômenos amorosos, mas sim devido à humilhação, que é o que sentimos sempre que nossa vaidade é ofendida”. Isso pode estar no rol dos ressentimentos de ter sido deixado, mas o amante também sofre pelo apego e pela crença de não mais encontrar alguém à “altura” para ocupar este lugar: espaço afetivo e psicológico do “outro”. Nem todos rezam pela cartilha do “antes só que mal acompanhado”, mas, quando, de fato, existe envolvimento, a substituição somente é possível depois de uma considerável descarga de demanda emocional relacionada ao objeto perdido. Antes disso, será apenas uma agressão autoimposta a um eu que já se encontra bastante ferido. O “ficar” não sara, não supre o amor, por vezes um pouco narcísico, machucado, talvez acentue ainda mais os sentimentos de perda e desvalor. Em outras palavras, há um momento específico da elaboração dessa perda em que um novo amor poderá ajudar a “esquecer” (na verdade continua fazendo parte do histórico de vida ou memória do indivíduo, mas dissociado de sentimento) os, agora, resíduos do antigo.
Como se proteger da decepção amorosa? Amar, como tudo na vida, é sempre um risco, porém, se, por um lado, muitos não se colocam 100% na relação, como uma reserva de autoapoio emocional para não cair fundo na situação emergencial da surpresa de um rompimento por outro, agindo assim, dificilmente essas pessoas vão poder dimensionar o sentido do amor, que lhes parecerá, para sempre, a tentativa de absorver uma bala envolta no papel. Talvez a “vítima do coração partido” ainda não esteja aberta para a vivência plena desse sentimento. Devido à culpa e/ou autopunição inconscientes, por algum nível de satisfação ou felicidade vivenciada, faz péssimas escolhas, boicota todo encontro que deixe implícita a proposta de um relacionamento saudável.
Para Schopenhauer (2004, p. 39), “via de regra, as grandes paixões nascem à primeira vista”. Segundo essa concepção, existe uma predisposição emotiva ao “amor à primeira vista”, uma sensibilidade empática de se sintonizar com a outra pessoa (FAGUNDES, 2000; CYRULNIK, 2001). Essencialmente, o amor difere da paixão, dado que aquele é inseparável do conhecimento, ou seja, somente é possível amar aquilo que se conhece, isto é, não existe “amor à primeira vista”. Porém, para se apaixonar ou ser arrebatado por uma atração violenta, tresloucada, não precisa ter uma cartografia do objeto desejado. Do contrário, seu exato desconhecimento servirá de esteio para que esse turbilhão de sensações e emoções chamado paixão possa eclodir. Em síntese, a paixão tem a doce e terrível habilidade de fingir não somente que é cega, mas também surda, e quanto mais “deficitários” forem esses sistemas sensoriais mais intensos serão o deslumbramento e o vigor das suas emoções e sensações mais singelas, assim como os desejos oníricos mais delirantes do “flechado pelo Cupido”(SILVA, 2010).
Na visão de Furtado (2008), o amor é um desejo militante engajado na realização de uma história. Por esse motivo, não existe “amor à primeira vista”. Ainda para o citado autor, “o amor é uma tarefa, uma dificuldade mais do que faculdade, precisa de tempo para fluir nos atos [...] que o constroem. [...] O amor é necessariamente convivência, ainda que não necessariamente convivência conjugal” (p.28). Decerto, é na relação de pura troca mercantilista, sem perspectiva espontânea da expressão afetiva, que o suposto amor geralmente culmina em posse e, assim, fixa-se no investimento excessivo ou na doação exagerada. Na compreensão de Hoffman (1996), toda “superproteção” é um “pseudo-amor”. Esse mesmo critério pode ser ampliado para a desmedida dedicação e doação de amor. Aliás, as ações com indícios de exacerbação, quase sempre, são sintomáticas.
O amor deve ser manifesto na condição de esmola, porque, “as boas ações [...] devem ser esquecidas no instante em que são praticadas, porque até a memória delas destruiria sua ‘bondade’”(ARENDT, 2010, p.93). O termo esmola parece muito forte, conota que o recebedor dessa ajuda ou graça encontra-se depauperado, e o doador, em condição favorável que permite socorrer o desvalido. Embora todo indivíduo tenha pré-disposição para a generosidade, a partir da família e da escola é mais incentivado para ser - ou se mostrar - melhor ou superior aos outros (SILVA, 2010). Desse prisma, constrói-se a sociedade competitiva. Diria que a generosidade se perdeu na paranoia produtiva e competitiva do mundo dito pós-moderno, bem como - usando os termos de Bauman (2009 - grifo do autor) - na “estrangeiridade” e na mixofobia (medo de misturar-se), e adquiriu feição meio antinatural em relação à qual os cidadãos devem ser estimulados ou devem reaprender a exercê-la.
Para Rorty (2007, p.71), “... fazemos esforços intermináveis para ajudar um amigo e somos inteiramente alheios ao sofrimento maior de outro...”. Ainda para o citado autor (passim), o senso comum de solidariedade humana é produto da socialização, criada pela reflexão e pelo aumento da sensibilidade aos detalhes particulares da dor e da humilhação aos tipos pouco familiares. A maioria das pessoas, praticamente, tornou-se incapaz de gestos de doação e benevolência os quais não sejam movidos por algum viés religioso, tendo em vista, não o desejo da recompensa material, mas o ganho subjetivo ou simbólico de fazer seu marketing perante o divino. Na ótica de Arendt (2010, p.91), “quando a bondade aparece abertamente já não é bondade, embora possa ainda ser útil [...] como um ato de solidariedade”. Com base nessa afirmativa, pode-se asseverar que a expressão do amor, desde que se propague, se ressalte, enfim, se torne pública, perde seu sentido de doação.
O ser humano tem um limite de doação; sua cota, com certeza, é pequena. Quem se doa além das suas possibilidades, mais cedo ou mais tarde, vai precisar ou desejar ser ressarcido, seja na mesma moeda ou por algum outro jeito que a compense. O doador vai se lembrar do quanto fez sem cobrar e de que, agora que precisa, a quem beneficiara “não move uma palha seca, nem está aí para a sua necessidade ou sofrimento”. Isso sugere, mesmo que momentaneamente, um arrependimento. Parece mesquinho, mas o ato da doação em geral requer, de alguma maneira, pagamento ou recompensa, portanto “nada é de graça”. Isto contraria o princípio do amor como dádiva, uma vez que “a pura dádiva é, então, o reconhecimento da humanidade do outro. Afora isso, essas pessoas [...] não são alocadas em qualquer divisão particular no mapa cognitivo do doador” (BAUMAN; MAY, 2010, p.130). No caso do relacionamento romântico, o objeto do amor consiste no receptáculo do fiel depositário das ações amorosas.
Os sujeitos que são explicitamente mercantilistas, embora nem sempre se reconheçam, não têm nem um pudor de trocar ou de barganhar seus afetos por bens materiais. Assim, não é de estranhar que uma pessoa, quando quer conquistar outra, é toda bondade, imensamente generosa, não tem barreira ou distância para seus gestos de atenção, doação e cuidados, mas, depois da conquista, essa excepcional doadora não tem a mesma disposição. Logo mais, de modo direto ou sutil, espera ou exige o retorno do seu do seu investimento, provavelmente com correção. No entender de Bauman e May (2010, p.139), “o que torna uma relação amorosa particularmente vulnerável e frágil é a necessidade de reciprocidade”. Ainda para esses autores, o amor é uma conquista difícil e custosa, por meio da qual se busca para essa função alguém que não demande reciprocidade1.
Comumente se acolhe a ação generosa, cuja intenção se sabe de antemão não ter o aval da pureza da alma. Quase sempre o doador é consciente de que a sua dedicação, só aparentemente, é despretensiosa, pois consiste em uma armadilha para tornar o outro refém da sua ajuda, cativar dependência, fazer-se necessário. Assim, a ajuda se efetiva em um semblante em que a razão interesseira é, pelas partes envolvidas, negada. Quem doa “engana”, e quem recebe permite “se enganar”. Todavia, o beneficiado reconhece que, em breve, terá de pagar, por vezes, muito caro a dádiva que desfrutou ou a deixa na contabilidade de um débito simbólico. Então, raramente há doação incondicional, porém parece existir, na maioria das pessoas, uma pré-disposição para o gratuito ou a vantagem, mesmo que esse ganho não acrescente ou não sirva para nada.
O homem dessa sociedade tem como parâmetro, para suas interações, a troca e a perspectiva de obter vantagens sobre outro, portanto o sujeito não deve fazer aquilo que implique exceder o limite da sua capacidade ou tolerância, ou seja, o que demande algum item extra de sacrifício. É comum, nas relações de paridade marido/mulher ou pais/filhos, o tipo de cobrança: “fiz tudo por você, dediquei-me, e agora você não me dar à mínima”. Por vezes, nem o amor paterno se reveste de incondicionalidade. No entender de Gikovate (1998, p.12-3 - grifo do autor), “o amor romântico é, talvez, o modo mais ciumento e possessivo de amar, apesar de ser uma adorável experiência e um ótimo remédio - paliativo - para nossa condição de desamparados”.
A carência ou sensação de desamparo, isto, certamente, ocorrem nos primórdios da formação da personalidade. Na atualidade, as crianças são mais independentes, espertas, autofucientes, no entanto, existem aquelas que apresentam essas características, não como uma decorrência natural do seu desenvolvimento, mas como um meio de defesa, que Winnicott (1988) chama de falso self. Tais crianças forjam essa autonomia para suprir a falta incondicional do amor, intuem que são amadas pelos bons modos como se comportam, e não pelas características singulares da sua personalidade. Com a maior clareza, “a criança percebe o pensamento do adulto, advinha a dúvida sob o elogio artificial” (MANNONI, 1999, p.IX).
O bom filho ou bom moço pode ser o protótipo dessa relação condicional e, para gozar desse status, construiu-se e manteve-se sob as diretrizes balizadas por seus genitores. Criança não tem que proteger seus pais, pois sua condição infantil implícita preocupação e cuidados. Para serem normais, crianças dão trabalho mesmo. Apesar de não ser cômodo para os pais, é muito saudável para a criança, e nenhuma é demoníaca ou desrespeitosa por causa disso, embora, nos dias atuais, o excesso de permissividade seja o pleno exercício da tirania filial que desestabiliza a autoridade paterna.
Quando a criança nota que, em nenhuma situação, não será deixada no relento do desamor por não acatar com todas as letras as determinações paternas, ou seja, que não tem de se submeter para ser amada, ela segue seus impulsos. Pode até tentar ser menos peralta ou se arrepender das suas traquinices, mas não tem jeito, é o seu destino enquanto processo de crescimento. Criança tem que ser filho e não pai dos seus pais. No primeiro caso, a criança se torna um adulto autoconfiante, e no segundo um sujeito inseguro, praticamente um pedinte da atenção, do carinho e do amor dos outros. A incondicionalidade amorosa, naturalmente, assegura à criança que a mesma é digna de amor, isto é, enquanto indivíduo, seu valor foi legitimado. Logo, a vida e o mundo lhe pertencem, portanto se permite ao livre e ao desinibido trânsito da dinâmica da sua existência. O falso self se afirma no fazer para agradar, precisa do olhar do outro, “prefere” sofrer ou perder, para não ferir ou desagradar as pessoas, não suporta ser objeto da má querência alheia. O mundo, para si, lhe parece impróprio. Assim, nessa ilegitimidade, sua timidez o leva a “andar pisando em ovos”.
Em relação a um casal, aquele parceiro que se doa muito, cobra ou fica ressentido, rancoroso, porque não obteve sua recompensa, assim, tende a se vingar pelo investimento perdido ou não reconhecido. A doação tem que ser desprovida da perspectiva de qualquer tipo de retorno, caso contrário, exige-se ou pune-se o recebedor, infeliz contemplado. Há mulher que reproduz na relação com seu parceiro uma conduta maternal e se sente ultrajada, quando o marido não retribui com igual intensidade. Na opinião de Gikovate (1998, p.73), “quem avançou na direção da individuação não gosta de receber sem poder retribuir, porque sabe que isso implica em crescente dependência, além de ofender sua vaidade”. Entretanto, o macho, seja sem escolaridade ou culto, naturalmente, sente-se superior à mulher, acha-se senhor do poder para seduzir e subjugar todas as fêmeas. Na sua fantasia, ele deveria na sua vida, com sua potência fálica, somente está disponível para folias sexuais e, feito gado ou cavalo reprodutor, para a procriação.
O macho tem uma noção muito nítida do limite da sua doação, não tem compulsão para agradar, pois não é um oprimido social. Somente os homens sensíveis, pouco autoconfiantes, democráticos são capazes de uma doação similar à feminina. Por uma questão cultural, o homem tem dificuldade de expressar seu lado mais suave. Nesse sentido, Veiga (2004, p.21) chama a atenção para o fato de que “a sensibilidade não pode ser deixada como monopólio dos gays e das mulheres. É injusto, e a humanidade perde muita coisa”. Independente de gênero, a verdadeira doação tem que ocorrer na condição de esmola, resulta daquilo que se tem em excesso, do que sobra. As incômodas moedas no fundo bolso/bolsa, cujas doações jamais irão fazer falta, pois trazem a sensação de bem-estar (por ter ajudado alguém) e alívio (de não tê-las mais chacoalhando). Se, por ventura, o pedinte bater novamente na porta, ninguém ousa pedir-lhe que lave os pratos, ou que corte a grama, muito menos protestar, caso ele passe sem cumprimentar, fingindo desconhecer o doador. Em resumo, ninguém para um mendigo para lhe cobrar favor em troca da esmola ofertada.
A doação de amor na condição de esmola também nunca provocará alguma inquietação no doador, se o beneficiado não tiver qualquer iniciativa de reconhecer ou recompensá-lo. O amor espontâneo, a exemplo da esmola, é uma ação sem nem uma exigência de troca, que se completa no prazer intrínseco do seu próprio movimento de doação ou dádiva. Segundo Bryson (2009 - grifo do autor), os doadores afetivos, em um primeiro momento, parecem ser “superlegais”, mas, na verdade, estão concentrados em tentar comprar amor.
Na visão do poeta Tom Jobim, “é impossível ser feliz sozinho...” Isto é verdade, se considerar que esse sozinho, além da falta da parceira, também significar não tem família, parentes, amigos. Afinal, “se o amor estabelece um aconchego físico, as amizades determinam um aconchego intelectual”(GIKOVATE, 1998, p.51), além do que a maior parte da energia do cidadão é destinada para o trabalho. Qual a cultura que promove condição saudável de vida amorosa? Existe de fato o que se chama de qualidade de vida? O social tem o compromisso de instigar ao casamento, para conservar a instituição família e, por meio desta, garantir a mão de obra e consumidores que fazem o capital circular. Assim, os solteiros ficam sob a suspeita de que são incapazes para “convivência sob o mesmo teto”, portadores de algum desajuste ou anormalidade. De acordo com a premissa de que ninguém consegue ser feliz sozinho, então todo solteiro está fadado à infelicidade. Porém, a maioria dos casamentos é um verdadeiro deserto humano, inferno abissal sem chance de crescimento pessoal. A solidão, sem sombra de dúvida, é uma condição universal que implica a responsabilidade por si mesmo (BRANDEN, 2002), mas quem não se acasalou, seja por opção ou falta de oportunidade, sob a pressão social, fica vulnerável a se autossabotar, possivelmente “lançando pérolas a porcos”.
O amor somente parece possível, quando o sujeito é capaz de lidar com a sua solidão e autoestima, assim, poderá suportar a vivência da solidão a dois. Segundo Branden (2002, p.128), “entre os vários fatores essenciais para o sucesso do amor romântico, nenhum é mais importante do que a autoestima”. A chave da empatia pelo outro é, antes de tudo, a capacidade de empatia por si. Assim, tentar ser sensível parece não ter efeito, porque, se não houver escuta com o coração, certamente medo e dor estarão misturados (BRYSON, 2009). Talvez o sujeito sereno seja o mais adapto para vivenciar o amor. A serenidade é uma disposição para o outro que não precisa ser correspondida para se revelar em toda sua dimensão, o sujeito sereno “deixa o outro ser o que é”, não entra em contato com o propósito de competir, criar conflito, vencer (BOBBIO, 2002 - grifo do autor).
A mulher, em especial na cultura machista, além das obrigações domésticas que absorvem boa parte da sua emergia, costuma se desmanchar em dedicação ao parceiro. Assim, resta-lhe pouco tempo para dedicar cuidados a si e à relação. Como diz Branden (2002, p.66), “o amor não produz autoestima; ele pode reforçá-la; mas não criá-la; e sem autoestima, o amor não pode sobreviver”. No entender de Gikovate (1998), o amor romântico tende à fusão de duas criaturas. Mas, ninguém se salva por meio do outro. A consciência de ser inteiro é de cada um, e que terá de encontrar meios para atenuar e aprender a conviver com as suas dores. Aceitar essa condição como inerente à condição humana parece fortalecer o eu do sujeito, no sentido de que, como ressalta Bryson (2009), não há desespero em ligar-se a outra pessoa, caso contrário, isso ocorre porque o indivíduo perdeu a ligação consigo.
Finalmente, quem entra numa relação de fachada, vive uma solidão que não é construtiva, uma vez que está quase impedido de se conhecer melhor e conviver em paz consigo. Namorado não é, necessariamente, a pessoa que está ao seu lado (casamento ou relacionamento estável), mas aquela com quem se imagina estar nos momentos mais importantes e/ou convidativos à intimidade. Se, em uma relação romântica, não tem sombra de um terceiro elemento nem paira “fantasma” dessa estirpe no campo do desejo, os dois poderão estar certos de que, de fato, formam um casal, portanto fazem jus à fluidez do sentimento amoroso.
Nota
1. Para Bauman e May (2010, p.145), “a relação de troca demanda regra de compromisso e autoridade confiável com a tarefa de garantir do ponto de vista legal a justiça da transação”.
Referências
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BRANDEN, N. A psicologia do amor: o que é o amor, por que ele nasce, cresce e às vezes morre. 2. ed. Rio de Janeiro: Record / Rosa dos Tempos, 2002.
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