1. Introdução
Neste breve relato, pretendemos tratar dos conceitos de dano moral em suas esferas objetiva e subjetiva a partir da comparação com critérios e conceitos da psicanálise que vemos autorizada ante ao tema, vez que na sua grande maioria das demandas judiciais que ensejam pedidos de indenizações por danos morais causados por terceiros.
2. Objetivo
Trazer à tona diferenciação entre o chamado mero aborrecimento, muito difundido entre doutrinadores e magistrados que tem neste instituto o princípio basilar para decidir se o acontecimento trazido à juízo teve o condão de lesar moralmente o indivíduo ou trouxe a este apenas um dissabor passageiro ou uma frustração de meras expectativas relacionadas a fatos do quotidiano do homem médio.
Objetivo principal, ainda mais que o acima exposto, fui buscar o conceito Freudiano que divide a psique do ser em pelo menos dois hemisférios muito tênues, mas que são sensivelmente diferenciados pela sua própria natureza, falamos do Ego e do Id.
Duas essências do pensamento humano que divergem em tese e em comportamento, pois se tratam de superficialidades versus sentimentos intrínsecos e que analisados do ponto de vista jurídico que compõe qualquer esfera do relacionamento humano, pode demonstrar até que ponto uma lesão de direito pode ter afetado o ser em sua profundidade ou a modo raso a meio de merecer ou não ser indenizado pelo dano efetivo.
3. História e evolução
Pontes de Miranda conceitua a expressão dano moral de modo muito prático ao estabelecer que A expressão dano moral tem concorrido para graves confusões, bem como a expressão alemã Schmerzengeld (dinheiro de dor). Às vezes, os escritores e juízes empregam a expressão dano moral em sentido amplíssimo (dano à normalidade da vida de relação, dano moral estrito, que é o dano à reputação, dano que não é qualquer dos anteriores mas também não ofende o patrimônio, como o de dor sofrida, o de destruição de bem sem qualquer valor patrimonial ou de valor patrimonial ínfimo). Aí, dano moral seria dano não patrimonial.
Outros tem como dano moral o dano à normalidade da vida de relação, o dano que faz baixar o moral da pessoa, e o dano à reputação. Finalmente, há senso estrito de dano moral: o dano à reputação [1] Gostaria que tal respeitosa definição realmente abrangesse todas as dimensões que o conceito de dano moral precisa para se perpetuar e integrar o ordenamento jurídico nacional como fonte de real justiça e não de enriquecimento ilícito como ocorrera no passado recente, nem como ato de “desvaloração”.[2] da moral humana como temos visto nos tribunais e decisórios brasileiros.
No início, tínhamos a indústria do dano moral, onde qualquer dor era levada a apreciação do judiciário como fonte de renda fácil e possíveis acordos mirabolantes, normalmente intentados contra pessoas jurídicas que não desejavam ver seus nomes e marcas de valor associadas a políticas de descaso ou lesão da esfera moral, quer fosse em relação a clientes consumidores, quer fosse em relação a terceiros do meio social e econômico em que estivessem inseridos. Foi um período certamente difícil, mormente aos magistrados que se viam tentados a não utilizar a figura indenizatória como máquina de fazer dinheiro para beneficiar partes que se movimentavam por interesses escusos e patrimonialistas valendo-se do judiciário para enriquecer, ante vítimas reais que ali buscavam a verdadeira reparação da lesão moral evidenciada com o intuito de ver amenizada a dor causada por seus algozes.
Em seguida, como em todo ciclo social, pudemos observar a retração da Justiça, mostrando-se temerosa em conceder aos lesados gordas indenizações que certamente iriam fazer com que aquele que provocara a lesão, no dito popular, pensasse duas vezes antes de repetir a conduta. Política esta, vista também pouco eficiente, pois ao invés do imaginado, veio a abarrotar o terceiro poder de ações demandadas quase que aleatoriamente, através da liberdade concedida pela via indireta da AJG Assistência judiciária gratuita que quando mal usada, facilita o exercício da aventura jurídica.
Atualmente o que vemos é a busca incessante de encontrar um mecanismo judicial para contendo as demandas despojadas de realidade subjetiva e aquelas nas quais o dano moral, a ofensa real deixe de ser reparada, possamos utilizar todos nós operadores do direito comprometidos com a própria Justiça, do binômio - reparação e desincentivo - para que além de reparar o dano causado, o causador abstenha-se de repetir o feito, ao tempo em que o lesionado reparado, sinta o calor da justiça corando sua face. [1] Tratado de direito privado, XXVI, § 3.107, p.30-31 in Dano Moral de Youssef Said Cahali, 2ª Ed., p. 21 [2] No sentido de atribuir pouco ou baixo valor.
4. Breve comparativo
Em todo o mundo e desde o direito romano, a moral do ser é protegida de acordo com os costumes, ao início, dando espaço maior para interpretações de líderes e poderosos que a cada tempo atribuíam um valor à lesão da subjetividade do homem e de seus princípios de acordo com critérios pouco democráticos, vinculando o tere afastando da Justiça e após muito tempo buscando a reaproximação que defendemos. Alguns ordenamentos jurídicos mais avançados já comportam facilmente medidas de contenção da violação moral do ser humano, quer seja como cidadão, como integrante social e agente integrador da sociedade, ou até mesmo quando seus instintos mais íntimos são alvejados.
Nos ordenamentos jurídicos mais avançados podemos encontrar legislações aprimoradas a cada critério donde compilamos trecho de comparação de Cristiano Carrilho:
1) No direito Chileno - O Código Civil chileno, em seu artigo 2.314 permite amplamente a reparação dos danos morais. No que pertine às imputações injuriosas, como a honra e o crédito de uma pessoa, a reparação somente caberia se ficasse suficientemente provado o dano emergente (CARMO,1996:300). A Constituição chilena (Decreto n. 1.345, de 08/10/81) em seu artigo 19 assegurou a honra como um verdadeiro direito subjetivo, ao dispor que:
"La Constituición assegura a todas las personas: (...) 4º El respeto y protección a la vida provada y pública y a la honra de la persona y de sua família."
2) No direito Espanhol O Código Civil Espanhol de 1890, devido ao seu laconismo, consagrava a irreparabilidade do dano moral. A partir de 1912 os espanhóis inclinaram-se à reparabilidade. Reprisando o art. 1.382 do Código Civil Francês, a legislação espanhola assim dispõe em seu Código Civil de 1890: "El que por accion causa daño a outro, interveniendo culpa o negligencia, está obligado a reparar el daño causado. " A partir de 1912 os espanhóis passaram a agasalhar o entendimento da reparabilidade do dano moral, muito embora a Suprema Corte de Justiça, em precedente jurisprudencial memorável, não tenha se apoiado na interpretação do artigo 1.902 do Código Civil, tendo antes se decidido por equidade, abeberando-se nas vetustas Partidas para dar suporte jurídico ao entendimento jurisprudencial. (Gubern apud Carmo, 1996:300).
3) No direito Inglês Conforme analisado por Eduardo Gabriel Saad (1997:702), na Inglaterra, o critério legal (exemplary damages) de indenização de danos morais tem grande abrangência, pois, alcança até aqueles de somenos importância, o que denota exemplar respeito pelos atributos da pessoa humana. De salientar-se, porém, que, no Direito Inglês, o dano de caráter patrimonial é o pressuposto do dano moral. Sem aquele, este não se configura.
4) No direito Libanês - O Código do Líbano, de 1932, traz expressivas disposições nos artigos 134, 2ª parte e 136:
"Art. 134, 2ª parte.Le dommage moral entre en ligne de compte aussi bien que le dommage matériel." "Art. 136. En pricipe, la réparation revêt une forme pecuniaire; elle este allouée en dommages - intérêts mais il appartiente au juge de lui donner une forme plus aproprié aut intérêts de la victime; elle intervient alors en nature; elle peut consister notamment dans insertions par la voie de la presse."
São apenas ilustrativas, pois em maioria, o Dano Moral é protegido e sua reparação exigível e lembrando que a este trabalho nos inferimos apenas a trazer linhas da psicanálise para servir de instrumento capaz de alinhar o decisório judicial ao caso concreto.
5. Lesão Moral
Lesão: buscamos no dicionário o perfeito conceito do vocábulo para a partir daí tecermos mais: lesar v.t. 1. Causar lesão a; contundir, ferir. 2. Ofender a reputação ou violar o direito de. 3. Prejudicar (1). [1] Ora, em sendo assim, temos então a certeza que lesão pressuponha ofensa, ferimento, violação e confirmamos em: lesão sf. 1. Ato ou efeito de lesar (-se). 2. Pancada, contusão. 3. Dano, prejuízo. 4. Violação dum direito. 5. Med. Dano produzido em estrutura ou órgão. [2]
Por ser inconteste o conceito, sua aplicabilidade também deveria ser. Mas sabemos que ao anexarmos o vocábulo, moralao termo, ingressamos em uma seara controversa e polêmica, pois a subjetividade toma conta de todo o problema. Neste momento percebemos que a palavra moraldo mesmo dicionário, prescinde de uma análise mais detida. Moral sf.
1. Ciência do bem e do mal, teoria do comportamento humano enquanto regido por princípios éticos (varia de cultura para cultura e se modifica com o tempo no âmbito de uma mesma sociedade); ética
2. Corpo de preceitos e regras que visa a dirigir as ações do homem, segundo a justiça e a equidade natural.
3. Os princípios da honestidade e do pudor; moralidade. [3]
Moralidade sf. 2. Conduta moral; princípios. [4] Desta forma, a equação pode muito facilmente ser montada pois que temos então o dano moral, como a Lesão (ferimento) ou Violação ou Prejuízo à princípios éticos e de honestidade. Mais um pouco, temos que a parte subjetiva se vê completada pela palavra honestidade, que definimos como: Honesto adj. 3. Diz-se da pessoa que age ou fala de acordo com seu pensamento; que tem boa-fé; franco, sincero. [5] Então temos todos os elementos para repetir que o Dano Moral é o Ferimento ou Violação ou Prejuízo à princípios éticos, derivados do pensamento subjetivo e da boa-fé, devendo ter portanto, critérios pessoais de avaliação.
6. Mero aborrecimento
aborrecimento já tem sua definição mais prática e unificada, mas vamos seguir a linha acima de partir das definições conceituais do vocábulo, onde, Aborrecimento s.m. 2. Contrariedade, descontentamento. O aborrecimento assim explicado traz certa leveza na interpretação dos acontecimentos que podem ser interpretados como Dano Moral, significando hierarquia informal entre os fatos para que se possa delimitar até onde vai este e se inicia o Dano Moral efetivo.
No aborrecimento, tem-se uma contrariedade, um descontentamento com uma situação cotidiana ou mesmo um fato específico, e esta situação deriva da força de agressividade aos princípios pessoais, variando entre o ocorrido e sua solução, ou ainda, da profundidade e não da propriamente da extensão deste. Quando abordamos a profundidade e não propriamente dito a extensão do dano, estabelecemos um novo critério de observação, pois somente assim, a marca deixada pelo fato poderá servir como base para que o magistrado possa avaliar a diferenciação entre o Dano Moral e o Mero Aborrecimento. Uma marca, o quão mais profunda, indicará mais possibilidade de haver sido lesada a psique do indivíduo, violando seus princípios pessoais mais arraigados, ou apenas uma contrariedade, um descontentamento passageiro e que por vezes, conta até mesmo com rápida solução, não sendo indelével a marca deixada.
7. Lesão à psique
Nosso trabalho está baseado na abordagem Freudiana para definir a profundidade das marcas ocasionadas pelos fatos que podem arranhar as relações sociais, comerciais e ainda aquelas que são passíveis de apreciação do poder judiciário na busca de uma reparação. A psique de Sigmund Freud estabelece-se pela subjetividade humana como águas onde somente o próprio indivíduo pode navegar[6], e, portanto deixando aparentemente hermético seu conteúdo. Se assim considerado, o conteúdo da mente humana, a psique, somente poderia ser observada pelo próprio ser, o que faria impossível qualquer avaliação das lesões não patrimoniais intentadas contra o indivíduo e que consequentemente afetam sua dignidade e subjetividade sem vínculos de proteção civil relacionada ao patrimônio.
Porém, há que se lembrar do patrimônio intelectual, aquele formado pelas experiências e sensações vividas por um ser e que podem ser únicas e irrepetíveis do sentido leigo, e cuja reposição jamais poderiam ser reconstruídas. Freud desenvolveu mecanismos de acesso a esse espaço mental que precipuamente necessita ser avaliado para estabelecer caminho seguro ou minimamente passível de apreciação para que confrontado ao fato gerador da insatisfação, esta possa ser medida em sua profundidade e para tanto, a psicanálise pode ser também ferramenta para investigar a mente humana que busca reparação judicial.
7.1. Lesão do Ego
Primeiramente, havemos de conceituar o ego estabelecido por Freud, para então passarmos a analisar a modalidade de entendimento da sua aplicabilidade como forma de mensurar a profundidade de certa lesão moral. Assim, temos que o Ego é a parte do aparelho psíquico que está em contato com a realidade externa. O Ego se desenvolve a partir do Id, à medida que a pessoa vai tomando consciência de sua própria identidade, vai aprendendo a aplacar as constantes exigências do Id. Como a casca de uma árvore, o Ego protege o Id, mas extrai dele a energia suficiente para suas realizações. Ele tem a tarefa de garantir a saúde, segurança e sanidade da personalidade. Uma das características principais do Ego é estabelecer a conexão entre a percepção sensorial e a ação muscular, ou seja, comandar o movimento voluntário. Ele tem a tarefa de autopreservação. Com referência aos acontecimentos externos, o Ego desempenha sua função dando conta dos estímulos externos, armazenando experiências sobre eles na memória, evitando o excesso de estímulos internos (mediante a fuga), lidando com estímulos moderados (através da adaptação) e aprendendo, através da atividade, a produzir modificações convenientes no mundo externo em seu próprio benefício.
7.2. Lesão do Id
O Id contém tudo o que é herdado, que se acha presente no nascimento e está presente na constituição, acima de tudo os instintos que se originam da organização somática e encontram expressão psíquica sob formas que nos são desconhecidas[7]. O Id é a estrutura da personalidade original, básica e central do ser humano, exposta tanto às exigências somáticas do corpo às exigências do ego e do superego. As leis lógicas do pensamento não se aplicam ao Id, havendo assim, impulsos contrários lado a lado, sem que um anule o outro, ou sem que um diminua o outro.[8] O Id seria o reservatório de energia de toda a personalidade. O Id pode ser associado a um cavalo cuja força é total, mas que depende do cavaleiro para usar de modo adequado essa força.
Os conteúdos do Id são quase todos inconscientes, eles incluem configurações mentais que nunca se tornaram conscientes, assim como o material que foi considerado inaceitável pela consciência. Um pensamento ou uma lembrança, excluído da consciência, mas localizado na área do Id, será capaz de influenciar toda vida mental de uma pessoa. A lesão ao Id é sempre mais profunda, vez que infere golpe aos valores de base de cada ser, daquilo que carrega consigo somando ações da vida comum e do senso de ética e razão para pautar-lhe o caminho da ética e da sublimação da sociedade em detrimento da individualidade nociva, mas sem que se perca a sensibilidade de percebermos, o Judiciário também, que é a soma dos Ids que deve se sobrepor aos Egos.
8. Conclusão
O Ego é referenciado como a parte do ser que se preocupa com a externalidade de si. Uma lesão ao Ego difere basicamente da lesão ao Id no que tange aos valores e princípios protegidos, vez que somos a somatória do Ego e do Id, porém, mais de nós é o Id, pois coincide com a nossa essência, com aquilo que realmente somos ou queremos ser em prol de um mundo melhor.
A qualidade de vida está intimamente ligada a esta equação de Egos e Ids feridos e frustrados, na medida em que damos mais valor a um que a outro. À essência e a superficialidade, o mero aborrecimento e o dano moral, ou dano à moral derivada do Id, da estrutura básica de cada ser humano e que o direito precisa proteger fortemente, caso contrário, corre-se o risco de valorização exacerbada do Ego em detrimento do Id de uma sociedade que precisa e merece ser mais Id que Ego. Ao magistrado, caberia distinguir a parte da psique lesada para que obtivesse rapidamente uma ferramenta prática e útil para definir a lesão como rasa ou profunda, Ego ou Id.
Temos ainda que após tal distinção, fica claro ao sol que as lesões de ordem moral quando restritas ao Ego, poderiam ser classificadas como aquelas derivadas do mero aborrecimento, das frustrações do cotidiano, reparáveis pelas próprias atitudes subsequentes ao dissabor. Enquanto aquelas ações que ferem a essência, o conteúdo psicológico de cada ser, o seu Id, onde residem valores morais não mutáveis facilmente e que são levados em cada alma ferida e portanto, passíveis de reparação indenizatória pelo dano moral causado.
Referências Bibliográficas
[1] Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa 3ª Edição Revista Ampliada 2ª Imp. Editora Nova Fronteira
[2] Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa 3ª Edição Revista Ampliada 2ª Imp. Editora Nova Fronteira
[3] Dicionário Larousse Cultural da Língua Portuguesa, Editora Nova Cultural
[4] Dicionário Larousse Cultural da Língua Portuguesa, Editora Nova Cultural
[5] Dicionário Larousse Cultural da Língua Portuguesa, Editora Nova Cultural
[6] Amorim, Eduardo C. E. 2009 www.amorimeliasadvocacia.com.br/artigos
[7] 1940, livro 7, pp. 17-18 na ed. bras. [8] 1933, livro 28, p. 94 na ed. bras.