O que tornou possível o surgimento da filosofia aos arredores da Grécia no final do século VII e no início do século VI antes de Cristo? Quais as condições materiais, isto é, econômicas, sociais, políticas e históricas que permitiram o surgimento da filosofia?
Podemos apontar como principais condições históricas:
As Viagens Marítimas
Que permitiram aos povos descobrir que os locais que os mitos diziam habitados por deuses, titãs e heróis eram, na verdade, habitados por outros seres humanos; e que as regiões dos mares que os mitos diziam habitadas por monstros e seres fabulosos não possuíam nem monstros nem seres fabulosos. As viagens produziram o desencantamento ou a desmitificação do mundo, que passou, assim, a exigir uma explicação sobre a origem, explicação que o mito já não podia oferecer;
A Invenção do Calendário
Que é uma forma de calcular o tempo segundo as estações do ano, as horas do dia, os fatos importantes que se repetem, revelando, com isso, uma capacidade de abstração nova, ou uma percepção do tempo como algo natural e não como um poder divino incompreensível;
A Invenção da Moeda
Que permitiu uma forma de troca que não se realiza através das coisas concretas ou dos objetos concretos trocados por semelhança, mas uma troca abstrata, uma troca feita pelo cálculo do valor semelhante das coisas diferentes, revelando, portanto, uma nova capacidade de abstração e de generalização;
O Surgimento da Vida Urbana
Com predomínio do comércio e do artesanato, dando desenvolvimento a técnicas de fabricação e de troca, e diminuindo o prestígio das famílias da aristocracia proprietária de terras, por quem e para quem os mitos foram criados; além disso, o surgimento de uma classe de comerciantes ricos, que precisava encontrar pontos de poder e de prestígio para suplantar o velho poderio da aristocracia de terras e de sangue (as linhagens constituídas pelas famílias), fez com que se procurasse o prestígio pelo patrocínio e estímulo às artes, às técnicas e aos conhecimentos, favorecendo um ambiente onde a filosofia poderia surgir;
A Invenção da Escrita Alfabética
Que como a do calendário e a da moeda, revela o crescimento da capacidade de abstração e de generalização, uma vez que a escrita alfabética ou fonética, diferentemente de outras escritas — como, por exemplo, os hieróglifos dos egípcios ou os ideogramas dos chineses — supõe que não se represente uma imagem da coisa que está sendo dita, mas a ideia dela, o que dela se pensa e se transcreve;
A Invenção da Política
Que introduz três aspectos novos e decisivos para o nascimentos da filosofia:
1. A ideia da lei como expressão da vontade de uma coletividade humana que decide por si mesma o que é melhor para si e como ela definirá suas relações internas. O aspecto legislado e regulado da cidade — da — servirá de modelo para a filosofia propor o aspecto legislado, regulado e ordenado do mundo como mundo racional;
2. O surgimento de um espaço público, que faz aparecer um novo tipo de palavra ou de discurso, diferente daquele que era proferido pelo mito. Neste, o poeta-vidente, que recebia das deusas ligadas à memória (a deusa Mnemosyne, mãe das Musas que guiavam o poeta) uma iluminação misteriosa ou uma revelação sobrenatural, dizia aos homens quais eram as decisões dos deuses a que eles deveriam obedecer.
Agora, com a , isto é, a cidade política, surge a palavra como direito de cada cidadão de emitir em público sua opinião, discuti-la com os outros, persuadi-los a tomar uma decisão proposta por ele, de tal modo que surge o discurso político como a palavra humana compartilhada, como diálogo, discussão e deliberação humana, isto é, como decisão racional e exposição dos motivos ou das razões para fazer ou não fazer alguma coisa. A política, valorizando o humano, o pensamento, a discussão, a persuasão e a decisão racional, valorizou o pensamento racional e criou condições para que surgisse o discurso ou a palavra filosófica.
3. A política estimula um pensamento e um discurso que não procuram ser formulados por seitas secretas dos iniciados em mistérios sagrados, mas que procuram, ao contrário, ser públicos, ensinados, transmitidos, comunicados e discutidos. A ideia de um pensamento que todos podem comunicar e transmitir, é fundamental para a filosofia.
Bibliografia
PRÉ-SOCRÁTICOS, Col. “Os Pensadores”, vol. 1, seleção de textos e supervisão do prof. Dr. José Cavalcante de Souza, São Paulo,
Abril Cultural, 1978.
Bibliografia Complementar
CHAUI, M. Filosofia, Série Novo Ensino Médio, Volume Único, São Paulo, Editora Ática, 2004.
CHAUI, M. Introdução à História da Filosofia – dos pré-socráticos a Aristóteles, Volume 1, São Paulo, Cia. das Letras, 2002.
COTRIM, G. Fundamentos da Filosofia: História e Grandes Temas, São Paulo, Ed. Saraiva, 7a tiragem, 2005.
KIRK, G.S., RAVEN, J. E. & SCHOFIELD, M. Os filósofos pré-socráticos, Lisboa, Fund. Calouste Gulbenkian, 1994.