[Lima Barreto]I- Autor:Lima Barreto estreou na literatura em 1909 com a publicação de Recordações do Escrivão Isaías Caminha. A crítica especia... Pressione TAB e depois F para ouvir o conteúdo principal desta tela. Para pular essa leitura pressione TAB e depois F. Para pausar a leitura pressione D (primeira tecla à esquerda do F), para continuar pressione G (primeira tecla à direita do F). Para ir ao menu principal pressione a tecla J e depois F. Pressione F para ouvir essa instrução novamente.
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Recordações do Escrivão Isaías Caminha

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por:

[Lima Barreto]

I- Autor:

Lima Barreto estreou na literatura em 1909 com a publicação de Recordações do Escrivão Isaías Caminha. A crítica especializada considera-o o nosso grande escritor pré-modernista. Sabe-se que o Pré-Modernismo no Brasil não chegou a efetivamente antecipar a densidade temática e a revolução da linguagem do Modernismo, mas refletiu, e em especial Lima Barreto, uma preocupação de retratar o social e o indivíduo inserido no meio em que ele vive. Digno de nota é o fato de o escritor jamais ter esquecido sua biografia, sendo sua obra uma espécie d extensão de seus dramas individuais, sobretudo o ressentimento que sua condição de mulato reafirmou e as dificuldades que teve de enfrentar numa sociedade preconceituosa como a do Rio de Janeiro do final do século XIX. Lima Barreto faz registro dos conflitos sociais e pessoais de maneira simples e sincera, tomando o leitor como cúmplice de seus sentimentos em relação às injustiças e aos seus anseios por conquistar um mundo melhor.

Realista por convicção e por afinidade e marxista ou maximalista por adoção e modismo. Lima Barreto viveu na época em que o Rio de Janeiro conheceu suas primeiras greves e os primeiros distúrbios sociais de massa que mobilizaram o operariado crescente, fatos que não escaparam da análise do arguto escritor. Suas atividades de jornalista ajudaram-no a registrar, com certa precisão, os fatos que estavam ocorrendo. Graças à prática, conseguiu um estilo mais despojado, longe da tendência parnasiana que invadia as Letras na época. A adjetivação torna-se econômica, a linguagem flui com clareza e precisão, se bem que não é possível presenciar a renovação no interior da frase ou na utilização de uma linguagem coloquial como fariam os modernistas.

II- Introdução ao tema:

A problemática abordada em Recordações do Escrivão Isaías Caminha é o preconceito racial. Segundo Lima Barreto, um indivíduo nas condições de Isaías Caminha poderia ser massacrado pelo preconceito, embora tivesse todas as condições intelectuais para vencer. O escritor confessa ter sido muitas vezes brutal tanto com o personagem quanto com o meio que retratava, mas, acrescenta ele, sempre foi movido pela sinceridade, pois quer ver triunfar a verdade na sua literatura. Portanto, o escritor está dentro dos padrões da literatura engajada que inundou a literatura do final do século XIX. Assim, toda a ficção de Lima Barreto tem muito da realidade que ele registrava após profundas observações da vida durante os primeiros momentos da República.

III- Enredo:

Isaías é o narrador e o personagem principal da obra, transformando-se, no decorrer da narrativa, numa espécie de alter ego do escritor que lhe deu conformação, pois nele e através dele pode o leitor contemplar boa parte da vida, da ilusões e das ideologias de Lima Barreto. O narrador inicia colocando seu círculo familiar desde a infância, sempre retrocedendo, para ressaltar sua inteligência, destacando a sabedoria do pai e a humildade da mãe. Como foi bom estudante, saiu do liceu com um currículo exemplar. Ao considerar as perspectivas de futuro, encontrou no Rio uma opção para o seu crescimento intelectual, encantado com a possibilidade de vir a ser um doutor. Seu tio Valentim recorreu ao coronel Belmiro que escreveu uma carta de recomendação endereçada ao deputado Dr. Castro. Isaías parte para o Rio com a crença inabalável de que obteria sucesso.

Quase menino, contando apenas dezoito anos, Isaías desembarcou no Rio, após longa e difícil viagem. Travou conversa com um comerciante de farinha, o padeiro Laje da Silva, que o acompanhou nas primeiras investigações pela nova cidade. Também conheceu de passagem o jornalista Dr. Ivã Gregoróvitch Rostóloff, ilustrado e simpático repórter, que impressionou Isaías Caminha devido a sua versatilidade linguística.

A situação do protagonista vai ficando dramática, pois não conseguia encontrar-se com o deputado Castro e seu dinheiro foi-se reduzindo rapidamente.

Isaías enfim encontrou uma oportunidade para apresentar a carta ao Dr. Castro, e teve uma outra grande decepção porque o deputado se recusou a ajudá-lo. Deve-se observar que Lima Barreto é um escritor com tendências ao Naturalismo.

A maior humilhação de Isaías veio quando foi intimado a ir à delegacia. Por alto soube de um roubo no hotel onde morava. Crente de que iria depor, sofreu ao perceber que ele era o acusado. Como estava acostumado com a valorização de sua condição, possível através da fama de bom estudante, e de ser muito inteligente, ao ser chamado de 'mulatinho' pelo funcionário da delegacia, ficou ferido em sua susceptibilidade. Ao ser agredido verbalmente, o delegado o encaminha para a prisão. Só se livra da cadeia por ser conhecido do jornalista Gregoróvitch.

Após o incidente, deixou o hotel, procurando abrigo em um quartinho de fundos. Lá conheceu o poeta revolucionário Abelardo Leiva, que se dizia socialista e era secretário do Centro de Resistência dos Varredores de Rua. O poeta vivia pobremente, mas curtia sua miséria, gabava-se de ter participado de duas greves e de ter conscientizado o operariado. Através dele frequentou as reuniões do apostolado positivista e ouviu as prédicas de Teixeira Mendes, em quem Isaías Caminha reconhece um impostor. É também através dele que desvenda o mistério da cidade que o acolheu tão friamente. A situação do protagonista fica cada vez pior.

Não havia mais dinheiro para seu sustento. Confessa ter-se abandona à miséria, pois mal comia ou comia mal e sua sobrevivência em parte era devida ao conterrâneo Agostinho Marques.

Por fim, Isaías reencontra o jornalista Gregoróvitch, a quem confessou suas agruras e os sofrimentos pelos quais estava passando. Gregoróvitch lhe arranja um lugar como contínuo no jornal O Globo. A partir desse momento, a obra praticamente gira em torno das observações que o personagem-narrador faz da rotina do jornal.
As observações de Isaías continuam, colocando não só a rotina ao jornal, como também suas próprias ideias e sua vivência. De certa maneira, esse contínuo simples e humilde tornou-se uma espécie de observador passivo dos homens que trabalhavam naquele ambiente, uma vez que pouco participava da rotina do jornal.

Gradativamente, Isaías vai percebendo que a rotina do jornal era uma sucessão de enganos e estavam todos, desde o redator-chefe até o mais íntimo dos operários, à mercê de um diretor tirano e voluntarioso e conferiram a ele o tratamento dispensado a um deus, cultuando-o, venerando-o, obedecendo-o cegamente. Cabe também a Isaías Caminha depositar confiança e admiração pela atuação de Loberant. Pôde constatar, ainda, qur todos se desprezavam entre si, dando aberturas à criação de uma atmosfera falsa e carregada, embora procurassem manter as aparências a qualquer custo. Os personagens de Recordações do Escrivão Isaías Caminha são montados de tal forma que parecem firmar a ideia de que, na cidade, os homens são movidos por interesses escusos e dirigidos pelas aparências. As observações de Isaías continuam sendo oportunas e ele, inteligente e astuto, aproveita-se delas num intenso processo de aprendizagem.

Um incidente viria a mudar a vida do contínuo: Floc, o crítico literário do jornal, suicida-se em plena redação.

Para não ser desmoralizado, o dono do jornal passa a protegê-lo e, pela primeira vez, o rapaz tem a oportunidade de mostrar seus reais dotes jornalísticos.

A referência às suas origens deixou Isaías fora de si, com vontade de agredir o colega. Conteve-se no momento, mas depois, na rua, não hesitou e deitou por terra aquele que o havia ofendido. Foram todos parar na delegacia; Isaías estava aliviado, mas satisfeito de ter-se vingado.

Pela primeira vez na vida, tinha consciência de que não havia se deixado humilhar. Loberant, desse dia em diante, deu mais apoio a seu tutelado. Todos da redação do jornal passaram a considerá-lo e a respeitá-lo. O diretor do jornal, como que movido pelo remorso de tê-lo deixado tanto tempo como contínuo, passou a cobrir-lhe de dinheiro e atenções, levava-o a toda a parte elogiando-lhe o talento, a inteligência e a cultura. Isaías manifestou vontade de abandonar o Rio, satisfazer seus desejos mais simples, casar-se, ter filhos.

IV- Comentário crítico

Em tom retrospectivo, Isaías narrou suas memórias com a convicção de ter vencido em parte os problemas e as humilhações que o meio social preconceituoso lhe delegava, mas mais consciente de estar vivendo uma situação falsa ou de exceção.

A prosa realista de Lima Barreto em Recordações do Escrivão Isaías Caminha está ainda engatinhando na arte de compor a linguagem. Seu trabalho artístico chegaria a páginas perfeitas em obras escritas posteriormente, presenteando a Literatura Brasileira com verdadeiras obras-primas como Triste Fim de Policiarão Quaresma. Em Recordações do Escrivão Isaías Caminha, Lima Barreto é pré-modernista por apresentar tonalidades críticas ao se voltar para o retrato do mundo das aparências e das falsidades. Não é possível esquecer de que muitas das observações aí feitas, ainda hoje são válidas, principalmente no retrato da nossa devassidão política, do jogo de interesses e das relações falsas que deixam os homens à mercê dos mais poderosos.

V- Personagens principais

Ricardo Loberant - diretor do jornal, tipo alto magro que soube trabalhar para fazer valer sua vontade de ver crescer o jornal. O jornal onde trabalhava 'trazia novidade: além de desabrimento de linguagem e um franco ataque aos dominantes, uma afetação de absoluta austeridade e independência [...] O Globo levantou a crítica, ergueu-a aos graúdos, ao presidente, aos ministros, aos capitalistas, aos juízes, e nunca houve tão cínicos e tão ladrões'. Dirigia o jornal mais polêmico do Rio de Janeiro na época e, sem dúvida, um dos mais vendidos devido à frieza e ao senso crítico que desenvolvia. Sua autoridade deixava marcas profundas em seus subalternos.

Leporace - arrogante secretário do jornal, 'sumidade em literatura e jornalismo, árbitro do mérito, distribuidor de gênios e talentos.'

Frederico Lourenço do Couto - assinava artigos com o pseudônimo de Floc. Era respeitado por entender de literatura e assuntos internacionais, por isso era considerado a alta intelectualidade do jornal. Não se metia em polêmicas ou em escândalos. Isaías comparava-o a uma águia.

Gregoróvitch - esse russo era a artilharia do jornal. Em estilo arrojado e violento, tecia críticas aos adversários.
Uma série de outros personagens vão desfilando aos olhos dos leitores, que se mantêm acesos com as descrições dos mais diferentes tipos, sempre apresentados como se fossem instrumentos principais ou secundários de uma batalha.