[Otto Lara Resende]

Narrativa de terceira pessoa. Tudo começa com uma situação cotidiana e estranha: subitamente, não sabia mais como se ata o nó da gravata. Depois de algumas tentativas, o homem pede ajuda à mulher. Esta não acredita, visto que esta era uma ação repetida diariamente pelo marido. Maquinalmente, suas mãos inconscientes se organizaram e, independentes, sem comando, ataram a gravata e o puseram em condições de, irrepreensivelmente vestido, sair de casa.

Ele tenta transformar o incidente em um caso de humor, mas se inquieta em desconforto e, grave, interditado, sentiu a língua travada, como se esquecer com é que se ata a gravata fosse logicamente sucedido da incapacidade de contar.

Em outro momento, na fila de espera do elevador, sentindo-se aparentemente em ordem, perturba-se com a demora do elevador que continuava parado no sétimo andar, exatamente o do seu escritório. Em devaneio, imagina dois homens tentando a custo enfiar dentro do carro uma mesa de escritório. Era sua mesa, mas muito maior. Seus papéis pessoais, sua caneta, as gavetas devassadas. Todos pareciam tranquilos, mas ele via outra vez, viu o contínuo segurando a porta do elevador e dois homens de macacão tentando irritadamente encaixar lá dentro a mesa enorme.

Sente-se desconfortável, um mal-estar físico. Parecia estar faltando alguma coisa, era como se tivesse esquecido qualquer coisa que não identificava. Que o condenava aos olhos da fila cada vez mais numerosa. De repente, o pensamento chega aos pés, ocorreu- lhe que tinha esquecido de calçar as meias.

A vontade é checar, mas sente-se observado, envergonhado. Tentava recompor o instante em que as calçara, mas em vão. Tomado pela obsessão, tinha vontade de suspender a calça e olhar, mas se continha. A impressão é que todos o observavam. Foi invadido pela certeza cruel de que usava meias vermelhas. [ ...] As meias berrantemente vermelhas tornavam os seus pés alheios.

Subitamente, o elevador escancara a porta no andar térreo; paralisado, procurava, pasmo, os dois homens de macacão, o contínuo uniformizado - e a mesa, a sua mesa. Mas diante dele, só via o elevador, como sempre, como todos os dias. Agora no sétimo andar, suspendeu as calças, fixou com espanto as próprias pernas: agora de novo as suas meias eram azuis.

Tudo volta à normalidade. Todavia, tempos depois, esquecera o nome de um amigo de infância. Depois de muito sofrimento tentando se lembrar do nome do colega de infância – Gumercindo - no meio da noite acordou assustado e tinha na boca, de graça, atado, o nome que em vão perseguira antes de dormir.

Também esquecera de como é mesmo que eu durmo? - queria saber qual a posição que habitualmente tomava para dormir. Toma remédio para dormir, mas não adiantou. É invadido pelo medo de não dormir. Uma semana depois, tomado pela insônia, esquece a posição de dormir. Aqui o elo perdido , é preciso recuperá-lo. Começa a esquecer a cara do seu sócio, não se lembra mais da própria mulher; tudo vai se partido; ele vai perdendo contado com o seu mundo. Angustiado, volta às pressas para casa. Sua mulher. Ali estava inteira, com seu rosto, seu nome. Tranca-se no quarto e começa a ler de cabo a rabo o jornal da tarde. [ ...] Lia e relia o mesmo texto, palavra por palavra. Chegava ao fim e era como se não tivesse lido. Resignado, entrega-se à amnésia: desprendera-se de tudo. a longa viagem ia começar, sem rumo, sem susto, para levar a lugar nenhum. Uma mulher acabou de entrar no quarto.

Era a esposa, não mais reconhecida.

- Quem sou eu? - ele perguntou num último esforço. E, para sempre dócil, conquistado, nem ao menos quis saber seu nome.

Otto Lara Resende (1922-1992)
Nasceu em São João Del Rei (MG). Ainda estudante de Direito, em Belo Horizonte, trabalhou como jornalista e professor. A partir de 1945, colaborou em diversos jornais e revistas do Rio de Janeiro e de São Paulo. Além de escritor e jornalista, dedicou-se à carreira diplomática. Escreveu em diversos jornais do país, entre os quais O Globo e Folha de S. Paulo.