As Meninas
[Lygia Fagundes Telles] I- Vida e obra Lygia Fagundes Telles <
https://www.algosobre.com.br/amp/resumos-literarios/as-meninas.html
[Lygia Fagundes Telles]
I- Vida e obra
Lygia Fagundes Telles
nasceu em São Paulo, a 19/04/1924.
Ainda criança, vive em várias cidades do interior paulista [pai: delegado e promotor público].
Curso ginasial no I.E. Caetano de Campos [aluna do prof. Silveira Bueno].
Curso secundário: começa a escrever suas primeiras histórias.
Cursos superiores: Educação Física e Direito.
Foi casada com Goffredo Telles Júnior e com o crítico de cinema Paulo Emílio Salles Gomes.
1944: publica Praia Viva, seu primeiro livro de contos.
1949: O Cacto Vermelho [prêmio Afonso Arinos].
1954: Ciranda de Pedra [primeiro romance]
1958: Histórias do Desencontro [prêmio do Instituto Nacional do Livro].
1963: Verão no Aquário [romance].
1964: Histórias Escolhidas e a novela Gaby.
1965: O Jardim Selvagem [prêmio Jabuti].
1970: Antes do Baile Verde [contos] - prêmio internacional em Cannes.
1971: Seleta [org. Nelly Novaes Coelho].
1972: prêmio Guimarães Rosa, pelo conjunto de sua obra.
1973: As Meninas: vários prêmios [Coelho Neto, Jabuti, da Associação Paulista de Críticos de Arte].
1977: Seminário dos Ratos [contos].
1980: A disciplina do amor [fragmentos].
1981: Mistérios [contos]
1989: As horas nuas [romance]
1991: A estrutura da bolha de sabão [contos]
1992: As Cerejas [escrito por Lygia, Duilio Gomes e Fanny Abramovich]
1996: A noite escura e mais eu.
Os melhores contos de Lygia Fagundes Telles são uma seleção de Eduardo Portella publicada pela Global, em 1984. Em 1987, foi lançado o livro de contos Venha ver o pôr-do-sol, pela Ed. Ática. Em 1993, a Siciliano publicou o livro Capitu, adaptação livre do romance D. Casmurro, em parceria com Paulo Emílio.
1996: Confissões de Leontina e fragmentos, A.
1996: Oito contos de amor.
1997: Venha ver o pôr-do-sol e outros contos
1998: Seminário dos ratos.
1998: Histórias de amor da coleção 'para gostar de ler'.
1999: Pomba enamorada ou uma história de amor e outros contos escolhidos.
2000: Invenção e memória
II- Enredo
O livro narra a história de três universitárias de condição social e origens diversificadas, que se conhecem em um pensionato de freiras na cidade de São Paulo, tornam-se muito amigas, apesar das diferenças de valores e personalidades, convivem durante algum tempo, compartilham seus dramas e sonhos, ajudam-se nos momentos difíceis e terminam por separar-se definitivamente.
O encanto e a dificuldade aparente da leitura repousam no foco narrativo cambiante: Lorena Vaz Leme, Ana Clara Conceição e Lia de Melo Schultz contam a própria história através do fluxo de consciência, misturando suas falas, ações, lembranças e críticas recíprocas. Depois dessa surpresa inicial, o leitor acaba por identificar o estilo de cada personagem e sente-se desafiado a desvendar o universo interior das três 'meninas'- uma paulista quatrocentona, uma baiana 'terrorista' e um modelo de moral 'duvidosa' e viciada em drogas.
Os capítulos não têm nome, mas números:
'Um'
Lorena Vaz Leme divaga em seu quarto dourado e rosa - com cozinha, geladeira, banheira etc - no pensionato Nossa Senhora de Fátima: pensa na amiga Lia de Melo Schultz, que tem pretensões a escritora e é militante política; no gato Astronauta, que cresceu e abandonou-a; em Che Guevara, que foi líder de toda uma geração; em M.N., homem misterioso que lhe desperta desejos eróticos, em Jesus Cristo, a quem dedica a música de Jimi Hendrix; e na morte desse roqueiro e de Rômulo, seu irmãozinho querido.
Lia aparece para pedir-lhe o carro de 'mãezinha' emprestado, e enquanto tomam o chá especial de Lorena, conversam e divagam sobre tolices e sobres coisas sérias, concomitantemente a greve na faculdade; a prisão de Miguel, namorado de Lia e militante político também; na alienação da burguesia acomodada; na repressão militar, nos amigos que estão presos e sendo torturados.
Lorena lembra a morte traumática de Rômulo e sua agonia nos braços da mãe, vitimado por um tiro acidental dado pelo outro irmão, Remo. Da fuga deste para o exterior através da Diplomacia, dos frequentes presentes que ele envia a ela [sinos, lenços, roupas, comida...].
Mistura a esses pensamentos a figura do médico Marcus Nemésios [o M.N.], casado e bem mais velho, de quem ela sonha receber amor, carinho e proteção [Aliás, passa o livro todo aguardando um telefonema dele, que nunca se concretiza]; evoca ainda a figura de Ana Clara, suas origens 'suspeitas', no excesso de tranquilizantes que consome; pensa na própria adolescência, ao piano, no gostoso convívio familiar, nos banhos de banheira, na decisão de morar no pensionato, no aluguel e decoração do quarto por Mieux, o atual namorado da mãe.
Lia fala sobre o livro que escrevera e acabara por rasgar. Criticam Ana Clara e o namorado Max, traficante que a viciou em drogas, e o provável e desconhecido noivo rico com quem ela pretende se casar para 'sair do buraco', após plástica restauradora da virgindade, 'bancada' por Lorena.
Lia pede várias vezes o carro emprestado, e um pouco de 'oriehnid' [dinheiro 'ao contrário', para dar sorte] para o 'aparelho'[= grupo de resistência à ditadura militar].
Apesar de temer envolvimentos com o grupo e suas consequências, Lorena é incapaz de dizer 'não' aos pedidos da [s] amiga [s].
'Dois'
Ana Clara e Max drogam-se na cama e deliram. Ela sente-se travada, bloqueada, apesar das sessões de terapia - ela odeia o analista. Acha-se bonita [modelo, 1,77 m] e carente - a mãe, prostituta, nunca lhe deu atenção. Lembra-se do Dr. Algodãozinho, que deixava seus dentes apodrecerem para abusar sexualmente dela e da mãe, em sua cadeira de dentista. Pensa no quanto ama Max, mas que em janeiro casa-se com o noivo rico e resolve seus problemas. Sente ódio de Deus - e de negros. Resgata a infância carente, repleta de ruídos [ratos, baratas] e cheiros, nos prédios em construção, onde vivia com a mãe e os sucessivos amantes.Também evoca detalhes da vida das amigas Lia e Lorena.
Max também delira. Reza. Teve educação esmerada [fala francês, é fino] mas empobreceu e tornou-se traficante. Tem uma irmã que sumiu com as joias da família e encontra-se internada em sanatório.
Ana e Max se amam, mas seu relacionamento é difícil e complicado.
'Três'
Lorena reflete sobre a violência do mundo; assaltos a bancos; a morte de Rômulo; a profissão de Remo propiciando sua 'fuga' para o exterior. Gostaria de poder alienar-se da 'máquina desse mundo' violento [intertextualidade com o texto 'A Máquina do mundo', de Carlos Drummond de Andrade], como uma ostra dentro de sua concha dourada [= seu quarto - refúgio]. Rememora a chegada de Lia e A. Clara e a 'invasão' das duas à sua privacidade, a amizade das três, apesar das personalidades opostas. Miúda e magra, mostra certa inveja da beleza de Ana Clara, apesar da diferença cultural...
Através da visão de Lorena, conhecemos um pouco mais sobre as duas amigas: Lia de Melo Schultz tem um 'pé' baiano, da mãe Diú [D. Dionísia] e outro berlinense, do pai seu Pô [Herr Paul, ex-oficial nazista]. Herdou do pai o vigor germânico; da mãe, as 'proporções gloriosas e a cabeleira de sol negro' e o açúcar da voz. É uma 'mulher-hino', enquanto Lorena vê-se como uma civilizada, requintada 'balada medieval' [ou 'Magnólia desmaiada', para os colegas da Faculdade de Direito].
Ana Clara 'arrombou' a privacidade de Lorena, obrigando-a a verdadeiros exercícios de caridade cristã: mexe em tudo, nos livros, nos objetos pessoais. Tem olhos verdes, é modelo, linda, mas 'de cuca embrulhada', deprimida e deprimente, juntadíssima, afetadíssima, mentirosíssima - 'ni ange ni bête' - [nem anjo, nem demônio]. Envolvida com sexo e drogas. Enquanto lancha ao sol, Lorena recorda o aborto de Aninha, resgatando a fábula da formiga e da cigarra [inconsciente, bagunceira, irresponsável], com quem compara a amiga.
Recebe carta de Remo e pensa na morte de Rômulo. Filosofa sobre o lado omisso das relações humanas. Sonha em casar-se com M.N., pois sente-se frágil, insegura, precisando de um homem em tempo integral.
Ao voltar para o quarto, pensa no colega Fabrízio, na noite chuvosa em que ele veio estudar mas preferiu envolvê-la nos braços, ameaçando sua virgindade; na falta de luz e subsequente chegada de Lia, estragando o momento mágico com suas alpargatas molhadas e suas pesquisas sobre a vida das prostitutas, sua obsessão por Miguel. Lia sai, mas chega Ana Clara, e 'se instala'. Fim da noite para Fabrízio e Lorena.
No dia seguinte, conheceu o Dr. M.N. na sua Faculdade e ganhou carona. Passa a viver aguardando seu telefonema, fantasiando um amor edipiano.
'Quatro'
Max delira na cama. Gosta de Chopin, de Renoir. Conversa com a Coelha [A. Clara] sobre a riqueza passada, as viagens. Ana compara os diferentes níveis de artistas abstratos e reclama de estar lúcida - teria tomado aspirina? Lembra o passado de miséria e sonha com o futuro promissor como psicóloga de ricaços - 'Nessa cidade as pessoas não se preocupam mais com nome, mas com o saco de ouro' [de que adianta o nome Vaz Leme de Lorena, descendente de bandeirantes?]. Quer esquecer a mãe, os amantes, Jorge, Aldo, Sérgio... e o suicídio com formicida. Lembra-se da amiga Adriana, feia e vesga, mas com casa na praia, onde A. Clara tentou lavar a memória do passado num banho de mar.
Max desperta e os dois deliram juntos. Ela está grávida e quer abortar. Ele deseja o filho, cuja voz diz ter ouvido. Vão ficar ricos e fazer cruzeiros pelo mundo. Ela é a gata borralheira, que tem encontro marcado com o noivo, que já deve estar inquieto com o atraso.
'Cinco'
Lorena aguarda o telefonema de M.N., como sempre. Pensa em arte, em literatura [Dante, Beatriz] , em música [jazz], em cheiros [incenso]; em morte [Rômulo]; na mãe e no carro [teme que Lia seja metralhada dentro dele]. Gostaria de poder sair de moto com Fabrízio, um cinema, um jantar... mas acha que ele deve estar na faculdade, incitando a greve e namorando uma poetazinha que resolveu seduzi-lo.
Recebe a visita da irmã Bula e desconfia que esta é a autora das cartas anônimas, que falam coisas horríveis sobre as meninas e as freiras, para Madre Alix, a superiora. Enquanto serve licor e biscoito para a freira, relembra a morte de Rômulo, as manchetes nos jornais; pensa em Lia, em Simone de Beauvoir [escritora francesa], em segundo e terceiro sexos, em M.N., em Che Guevara, em morrer e renascer [segundo S. Marcos, 'é necessário nascer de novo']. Recupera a teoria da amiga 'terrorista' sobre a perda de pureza do baiano e do índio, e cita Gonçalves Dias.
Coloca um Noturno de Chopin e serve constantemente vinho à freirinha. Quando tampa a garrafa, pensa na ferida de Rômulo, na fuga de Remo. Despede-se da Irmã Bula e de sua velhice sem sentido.
'Seis'
Na sala imunda e mal iluminada onde montaram o 'aparelho', Lia ['Rosa de Luxemburgo'] e Pedro começam a separar material para o jornal. Conversam sobre experiências homossexuais; Jango; o nazismo; conceito de santidade; sobre Che Guevara; Martin Luther King [líder negro americano], engajamento político-social, atuação da Igreja progressista, casamento de padres, amor... Sai para uma operação noturna com o Bugre, que lhe conta sobre a próxima deportação de Miguel para a Argélia. De volta ao pensionato, feliz, conversa com Madre Alix: fala de seu amor pela família, do passado com saudade, do presente [fases da vida!...]; de A. Clara, Max e seu envolvimento com drogas; na sua pretensa vocação para escritora; na desilusão com Miguel [muito cerebral] e Lorena [muito sofisticada].
Madre Alix quer ajudá-las, mas sente-se impotente e teme por seu futuro. Sugere uma epígrafe para o livro de Lia e que serve para a vida das duas: 'Sai da tua terra e da tua parentela e da casa de teu pai e vem para a terra que eu te mostrarei'[Gênesis].
'Sete'
Irmã Clotilde leva frutas para Lorena, que se exercita na bicicleta. Falam sobre as duas Santas Teresas; sobre Tolstói; sobre homossexualismo [comenta-se no pensionato que I. Clotilde é lésbica]; sobre beleza, ideais, filosofias de vida. A freira vai lavar as mãos e volta criticando a cor, a saúde e a alimentação das três amigas. Lorena anseia por beleza e um telefonema... Quer ficar só, mas a freira se demora na visita e no exame do quarto, dos animais, dos livros da moça. Esta lê um pedaço de um livro de Direito, cita frases em latim, enquanto pensa sobre o lado oculto das pessoas: a vida é um jogo de espelhos, e Lorena tem sede de autenticidade...
Lia chega, a freira se vai. Devolve a chave do carro, conta sobre a viagem à Argélia, brinca de entrevistar Lorena [os assuntos de sempre: virgindade, casamento, M.N., Fabrízio, Pedro] e diz que esta é edipiana. Ambas mostram-se preocupadas com a gravidez de Ana 'Turva' e sua dependência. Divertem-se no jardim e despedem-se no portão. Lia pede roupas para os 'revolucionários'.
Lorena fica pensando na iniciação sexual das amigas e imagina como será sua 'primeira vez'[M.N. é ginecologista, um 'gentleman'].
'Oito'
Ana Clara e Max acordam e conversam: ele e Lorena são 'aristocratas', têm álbum de retratos... Os de Lorena estão na garagem do pensionato. Criticam o amante jovem de 'mãezinha', Mieux. Max vai até a geladeira, come e volta a dormir. Ana pensa na desculpa que vai inventar para o noivo aceitar seus sumiços. Arruma-se e sai. Chove. São quase 11 h da noite. Não consegue táxi e aceita carona de um industrial em um Mercedes. Foge dele e refugia-se em um bar, onde encontra um velhote estranho que a convida para seu apartamento. Confundindo-o com 'um pai' que nunca teve, segue-o. Apartamento de boêmio - retratos na parede, vitrola de corda, discos de tangos. Ana deita-se na cama e dorme, enquanto ele lê para ela textos sobre Napoleão, Rodolfo Valentino e tem orgasmo. Diz que o platonismo amoroso é a forma mais sutil e temível da paixão infinita e insaciável.
'Nove'
Na banheira, Lorena filosofa sobre 'ser' ou 'estar' no mundo - na desintegração do ser humano na cidade grande, no papel do filósofo, do advogado, do médico, do psiquiatra. Sente todos os sintomas de todas as doenças mentais, apesar de charmosa e inteligente. Lembra-se da fazenda, das procissões em que se vestia de anjo. Rememora o primeiro encontro com M.N. e imagina as reações de mãezinha quando lhe contar sobre ele. Sai do banho emocionada e veste um robe. Chega o colega Guga, que lhe conta ter abandonado a família, a escola e estar vivendo em um porão, numa comunidade. Escandalizada com sua sujeira, Lorena corta-lhe as unhas, alerta-o sobre promiscuidade e lê para ele uma carta de M.N. Guga se excita e tenta amá-la. Ela quase cede, mas reage e ele se vai.
Chega Lia. Conversam sobre filosofia, Lacan, auto-identificação, transferência de afetos. Lia quer provar que M.N. está mais para pai que para namorado, mas Lorena não admite. Falam sobre o telefonema de Herr Pô e da promessa de ajuda em dinheiro para a viagem. Lorena entrega a Lia um cheque em branco e pede-lhe para usar uma cruz na corrente, enquanto filosofa sobre Deus, religião, fé. Lia sai rindo. Lorena faz caretas.
'Dez'
Lia pega carona com o motorista de mãezinha de Lorena e vai visitá-la. No caminho, consegue fundir a cabeça do senhor com seu discurso sobre família e liberdade. Recebida no hall pelo mordomo, fuma, examina os objetos e tapetes luxuosos, enquanto imagina sua viagem, a desunião da esquerda; vê-se na Argélia escrevendo seu diário e exaltando a Pátria.
Mãezinha chora, na cama, a morte do psiquiatra Dr. Francis. Desajeitada, Lia tenta consolá-la e ouve suas lamúrias sobre a diferença de idade entre ela e Mieux, a impossibilidade de acompanhá-lo em seus programas, a dificuldade em aceitar a velhice e a morte. Lia lembra-se de sua família [tão equilibrada!] com saudade e amor.
Mãezinha pergunta sobre os namoros de Lorena e Lia [acha-a masculinizada] e quer trazer a filha de volta a casa. Conta uma versão totalmente diferente sobre a morte de Rômulo [falência cardíaca, ainda bebê]. Lia sente-se nauseada e pensa em ver o álbum de fotos na garagem: acha que mãezinha está escamoteando a tragédia por autodefesa. Ganha roupas e mala para a viagem.
'Onze'
Tarde da noite. Ana Clara chega transtornada ao quarto de Lorena, que está estudando para a prova no dia seguinte [a greve terminara]. Entra arrastada, gritando de dor no peito e imunda. Lorena coloca-a na banheira - seu corpo está cheio de nódoas roxas e sofre alucinações com formigas, baratas, Deus e Max. Pede uísque e a bolsa. Delira. Lorena pensa no abismo entre o ser e o estar, num futuro feliz no campo, fora de sua casca. As novelas da vizinhança encobrem os ruídos e finalmente A. Clara adormece. Lorena toma chá.
Finalmente Lia chega para preparar as malas [a viagem será na manhã seguinte] e Lorena vai até seu quarto. Conversam muito - sabem que estão se despedindo - e Lia conta-lhe que Guga virá procurá-la. Não vêem futuro na relação com M.N., que jamais abandonará a família, pois a 'dor do remorso dói mais que a dor física'[Tolstói].
Ao voltar para o quarto, Lorena tem um choque: A. Clara está morta.
'Doze'
Lia corre aos acenos da amiga. Ao entrar, encontra Lorena massageando o peito de A. Clara, tentando revivê-la, enquanto reza. Lia pensa em chamar o pronto-socorro, em acordar todo mundo, em que poderia ter feito mais pela amiga, além dos 'discursos'. A bolsa de A. Clara está aberta: talvez dali ela tirara a própria morte. Lorena tem ideias e age: encomenda o corpo, reza em latim, veste e pinta A. Clara como se esta fosse a uma festa. Elimina todas as pistas comprometedoras para Aninha e Max, além das freiras do pensionato. As duas amigas carregam A. Clara através da noite providencialmente nebulosa e abandonam o corpo em um banco em uma linda praça do bairro.
Voltam para o pensionato e separam-se: cada uma vai viver a própria vida. Lia no exílio. Lorena de volta para a casa de mãezinha, deixando sua concha para a futura hóspede, que vem do Pará.
III- Análise dos elementos constitutivos da narrativa.
Ação
A ação do livro é prevalentemente interiorizada. Quase nada acontece na realidade exterior; a vidinha pacata e rotineira no pensionato, as conversas intermináveis, os estudos, as visitas das personagens ao redor do quarto de Lorena - centro daquele microcosmo -, poucos momentos na faculdade e no 'aparelho'; as atitudes contraditórias de Ana Clara e sua morte; a solução dada pelas amigas para se livrarem de um cadáver comprometedor.
Tudo se passa no âmbito da memória, enquanto as meninas resolvem o passado e evocam suas experiências em busca de autoconhecimento, de solução para seus traumas e conflitos interiores, para a exorcização de seus 'fantasmas'.
Personagens
Lorena Vaz Leme, filha de fazendeiros, culta, fina, aristocrática, descende de bandeirantes. É aluna na Faculdade de Direito e bastante estudiosa: cita com frequência passagens da Bíblia, frases em latim, em francês, em espanhol, de filósofos variados, escritores e músicos. Demonstra cultura e educação esmerada, onde se fundem harmoniosamente o erudito e o popular. Assistiu impotente à derrocada da própria família e evoca frequentemente esse passado, onde contrapõe os momentos felizes da infância, na fazenda, à morte acidental do irmão e a subsequente desagregação do núcleo familiar - a fazenda vendida, o pai internado em sanatório, o irmão traumatizado pela culpa, a mãe vivendo de fantasias, terapias e falsas ilusões.
Lorena tenta 'equilibrar-se' fechando-se em uma concha dourada dentro do pensionato de freiras, onde pratica ginástica, faz chá, recebe cartas e presentes do irmão, visitas frequentes de colegas, e de onde ajuda as amigas. Toma sol, lê, filosofa, mas pouco age. Segundo Lia, trata-se de uma burguesa alienada, apesar da bondade e do carinho com que recebe e ajuda a todos.
Mas o mundo insiste em invadir sua privacidade - as amigas, as freiras, Fabrízio, Guga, o amor impossível pelo médico mais velho colocam-na em frequente conflito com o mundo exterior. Procurando viver de sonhos, perde várias oportunidades de realizar-se afetivamente e ser feliz.
No entanto, diante da morte de A. Clara, consegue definir-se e agir positivamente, encontrando, por um lado, solução para o problema imediato; e, de outro, um possível desfecho para sua alienação: voltará para a casa da mãe, acabará por perceber a impossibilidade de um compromisso com M.N. e se abrirá para o amor de Guga, enquanto se resolve a enfrentar o mundo e a deixar sua 'concha' definitivamente.
Lia de Melo Schultz serve como contraponto à 'finesse' de Lorena: veste-se mal, usa alpargatas, não gosta muito de banho, não cuida da aparência. Veio da Bahia para fugir da mãe superprotetora e do pai com um passado misterioso de ex-oficial nazista. Matricula-se no curso de Ciências Sociais [foco de agitações estudantis na década de 60], onde se envolve com um grupo militante da esquerda e apaixona-se por Miguel, que acaba preso.
Sua preocupação consiste em angariar dinheiro e roupas para o 'aparelho', e está sempre discursando contra a alienação da burguesia, das amigas, e a pobreza do Nordeste. Seu equilíbrio repousa sobre dois referenciais: em seu engajamento político [doação de amor aos amigos e à liberdade da Pátria] e na segurança que encontra no amor de Miguel e no apoio da família, que, mesmo à distância, protege-a e dispõe-se a ajudá-la em sua fuga para o exterior. Escolhe seu próprio caminho e resolve-se bem.
Ana Clara Conceição apresenta o temperamento mais problemático e a personalidade mais inconsistente das três, apesar do fascínio que a força de suas evocações exerce sobre o leitor, as amigas e Madre Alix, principalmente.
Filha de pai desconhecido, amargou uma infância carente, junto a uma mãe prostituída e constantemente machucada pelos sucessivos companheiros, um dos quais a induz ao suicídio pela ingestão de formicida. Ana foi seduzida por um dentista, que abusa sexualmente da mãe e da filha. Traumatizada, não consegue encontrar prazer nos seus relacionamentos amorosos. Permanece quase o livro todo na cama com o namorado Max, traficante que a viciou em drogas e, embora conversem muito, seu discurso aparece truncado - amam-se, mas não conseguem ser felizes.
Sob o efeito das drogas, suas evocações são basicamente sinestésicas: ruídos [o roque-roque dos ratos e o barulho das baratas, nas construções], cheiros [do consultório do dentista, da bebida, do mar, do corpo de Max...], sensações variadas de frio e de calor entrecruzam-se enquanto ela desnuda seus traumas sem qualquer pudor e, fugindo à realidade, adia todas as soluções para 'o ano que vem'.
Só que o peso da memória é mais forte: nem a aspirina; nem a ilusão de um noivo rico; nem a probabilidade da plástica restauradora da virgindade; nem a perspectiva de ascensão social através da Faculdade de Psicologia, da carreira de modelo, do dinheiro que conseguirá na clínica para a burguesia; nem o amor e os conselhos de Madre Alix e das amigas conseguem salvá-la. Seu fim é trágico: morre de overdose no quarto de Lorena, e, vestida e enfeitada, cumpre seu destino num banco de praça, sem prejudicar aquelas pessoas que conseguiram dar-lhe um pouco de afeto, mas não a paz de que tanto necessitava.
Tempo
Subjaz à narrativa uma sequência cronológica pouco marcada de alguns dias ou poucas semanas: o tempo é voluntariamente vago e difícil de precisar. O que prevalece é o tempo psicológico, pois tudo acontece através do entrecruzar da memória, da evocação do passado, da mistura com algumas ações no presente.
Alguns fatos permitem a localização da obra no final dos anos 60, pois evocam as agitações sociais, as greves universitárias, a prisão e a tortura de militantes políticos sob o enrijecimento da ditadura militar, o crescimento agressivo da megalópole que tritura o jovem e esmaga sua individualidade, alienando-o, censurando-o e dificultando-lhe a busca de caminhos.
Passado e presente fundem-se de modo inextricável, e nos traumas da memória encontram-se as explicações para os problemas existenciais das três meninas - símbolos de toda uma geração massacrada e alienada por forças do passado e das circunstâncias.
Espaço
Oprimidas pela cidade grande e sua violência, as três meninas refugiam-se no Pensionato N. Senhora de Fátima, na região central de São Paulo. O quarto-concha de Lorena constitui-se no refúgio para onde as pessoas convergem em busca de conforto, de carinho, de segurança, de afeto e compreensão - um tipo de oásis dentro de um mundo desorganizado, caótico e extremamente ameaçador, onde 'Deus vomita os mortos'.
Foco Narrativo
O foco narrativo em primeira pessoa é manipulado pela Autora de forma magistralmente cambiante: ele se desloca constantemente [e inesperadamente!] para o fluxo de consciência das três amigas, que se entrevistam, que se apresentam umas às outras e ao leitor, que refletem continuamente sobre si mesmas e umas sobre as outras, arrastando-nos nessas frequentes invasões à privacidade de A. Clara, Lorena e Lião, que se vão desnudando paulatinamente diante de nós.
Existe uma dificuldade inicial para a leitura até a identificação do estilo peculiar de cada personagem, pois cada uma delas se exprime dentro de seu 'dialeto' coloquial - o discurso mais elaborado e culto de Lorena, o regionalismo politicamente engajado de Lião e o pensamento confuso e truncado de Ana 'Turva'.
Superada essa dificuldade, o leitor mergulha de corpo e alma no universo fantástico dessas três meninas encantadoras, representantes autênticas daquele que foi um dos períodos mais importantes e difíceis para a emancipação da mulher, para a liberdade de pensamento e para a realização individual dentro de um universo politicamente conturbado.
O romance As Meninas oferece-nos, de um lado, um painel saboroso das vivências de três pessoas em busca de si mesmas; de outro, uma amostra dos problemas cruciais que agitaram a juventude durante um dos períodos mais conturbados da história do Brasil, que Lygia Fagundes Telles teve a ousadia e a coragem de denunciar.
I- Vida e obra
Lygia Fagundes Telles
nasceu em São Paulo, a 19/04/1924.
Ainda criança, vive em várias cidades do interior paulista [pai: delegado e promotor público].
Curso ginasial no I.E. Caetano de Campos [aluna do prof. Silveira Bueno].
Curso secundário: começa a escrever suas primeiras histórias.
Cursos superiores: Educação Física e Direito.
Foi casada com Goffredo Telles Júnior e com o crítico de cinema Paulo Emílio Salles Gomes.
1944: publica Praia Viva, seu primeiro livro de contos.
1949: O Cacto Vermelho [prêmio Afonso Arinos].
1954: Ciranda de Pedra [primeiro romance]
1958: Histórias do Desencontro [prêmio do Instituto Nacional do Livro].
1963: Verão no Aquário [romance].
1964: Histórias Escolhidas e a novela Gaby.
1965: O Jardim Selvagem [prêmio Jabuti].
1970: Antes do Baile Verde [contos] - prêmio internacional em Cannes.
1971: Seleta [org. Nelly Novaes Coelho].
1972: prêmio Guimarães Rosa, pelo conjunto de sua obra.
1973: As Meninas: vários prêmios [Coelho Neto, Jabuti, da Associação Paulista de Críticos de Arte].
1977: Seminário dos Ratos [contos].
1980: A disciplina do amor [fragmentos].
1981: Mistérios [contos]
1989: As horas nuas [romance]
1991: A estrutura da bolha de sabão [contos]
1992: As Cerejas [escrito por Lygia, Duilio Gomes e Fanny Abramovich]
1996: A noite escura e mais eu.
Os melhores contos de Lygia Fagundes Telles são uma seleção de Eduardo Portella publicada pela Global, em 1984. Em 1987, foi lançado o livro de contos Venha ver o pôr-do-sol, pela Ed. Ática. Em 1993, a Siciliano publicou o livro Capitu, adaptação livre do romance D. Casmurro, em parceria com Paulo Emílio.
1996: Confissões de Leontina e fragmentos, A.
1996: Oito contos de amor.
1997: Venha ver o pôr-do-sol e outros contos
1998: Seminário dos ratos.
1998: Histórias de amor da coleção 'para gostar de ler'.
1999: Pomba enamorada ou uma história de amor e outros contos escolhidos.
2000: Invenção e memória
II- Enredo
O livro narra a história de três universitárias de condição social e origens diversificadas, que se conhecem em um pensionato de freiras na cidade de São Paulo, tornam-se muito amigas, apesar das diferenças de valores e personalidades, convivem durante algum tempo, compartilham seus dramas e sonhos, ajudam-se nos momentos difíceis e terminam por separar-se definitivamente.
O encanto e a dificuldade aparente da leitura repousam no foco narrativo cambiante: Lorena Vaz Leme, Ana Clara Conceição e Lia de Melo Schultz contam a própria história através do fluxo de consciência, misturando suas falas, ações, lembranças e críticas recíprocas. Depois dessa surpresa inicial, o leitor acaba por identificar o estilo de cada personagem e sente-se desafiado a desvendar o universo interior das três 'meninas'- uma paulista quatrocentona, uma baiana 'terrorista' e um modelo de moral 'duvidosa' e viciada em drogas.
Os capítulos não têm nome, mas números:
'Um'
Lorena Vaz Leme divaga em seu quarto dourado e rosa - com cozinha, geladeira, banheira etc - no pensionato Nossa Senhora de Fátima: pensa na amiga Lia de Melo Schultz, que tem pretensões a escritora e é militante política; no gato Astronauta, que cresceu e abandonou-a; em Che Guevara, que foi líder de toda uma geração; em M.N., homem misterioso que lhe desperta desejos eróticos, em Jesus Cristo, a quem dedica a música de Jimi Hendrix; e na morte desse roqueiro e de Rômulo, seu irmãozinho querido.
Lia aparece para pedir-lhe o carro de 'mãezinha' emprestado, e enquanto tomam o chá especial de Lorena, conversam e divagam sobre tolices e sobres coisas sérias, concomitantemente a greve na faculdade; a prisão de Miguel, namorado de Lia e militante político também; na alienação da burguesia acomodada; na repressão militar, nos amigos que estão presos e sendo torturados.
Lorena lembra a morte traumática de Rômulo e sua agonia nos braços da mãe, vitimado por um tiro acidental dado pelo outro irmão, Remo. Da fuga deste para o exterior através da Diplomacia, dos frequentes presentes que ele envia a ela [sinos, lenços, roupas, comida...].
Mistura a esses pensamentos a figura do médico Marcus Nemésios [o M.N.], casado e bem mais velho, de quem ela sonha receber amor, carinho e proteção [Aliás, passa o livro todo aguardando um telefonema dele, que nunca se concretiza]; evoca ainda a figura de Ana Clara, suas origens 'suspeitas', no excesso de tranquilizantes que consome; pensa na própria adolescência, ao piano, no gostoso convívio familiar, nos banhos de banheira, na decisão de morar no pensionato, no aluguel e decoração do quarto por Mieux, o atual namorado da mãe.
Lia fala sobre o livro que escrevera e acabara por rasgar. Criticam Ana Clara e o namorado Max, traficante que a viciou em drogas, e o provável e desconhecido noivo rico com quem ela pretende se casar para 'sair do buraco', após plástica restauradora da virgindade, 'bancada' por Lorena.
Lia pede várias vezes o carro emprestado, e um pouco de 'oriehnid' [dinheiro 'ao contrário', para dar sorte] para o 'aparelho'[= grupo de resistência à ditadura militar].
Apesar de temer envolvimentos com o grupo e suas consequências, Lorena é incapaz de dizer 'não' aos pedidos da [s] amiga [s].
'Dois'
Ana Clara e Max drogam-se na cama e deliram. Ela sente-se travada, bloqueada, apesar das sessões de terapia - ela odeia o analista. Acha-se bonita [modelo, 1,77 m] e carente - a mãe, prostituta, nunca lhe deu atenção. Lembra-se do Dr. Algodãozinho, que deixava seus dentes apodrecerem para abusar sexualmente dela e da mãe, em sua cadeira de dentista. Pensa no quanto ama Max, mas que em janeiro casa-se com o noivo rico e resolve seus problemas. Sente ódio de Deus - e de negros. Resgata a infância carente, repleta de ruídos [ratos, baratas] e cheiros, nos prédios em construção, onde vivia com a mãe e os sucessivos amantes.Também evoca detalhes da vida das amigas Lia e Lorena.
Max também delira. Reza. Teve educação esmerada [fala francês, é fino] mas empobreceu e tornou-se traficante. Tem uma irmã que sumiu com as joias da família e encontra-se internada em sanatório.
Ana e Max se amam, mas seu relacionamento é difícil e complicado.
'Três'
Lorena reflete sobre a violência do mundo; assaltos a bancos; a morte de Rômulo; a profissão de Remo propiciando sua 'fuga' para o exterior. Gostaria de poder alienar-se da 'máquina desse mundo' violento [intertextualidade com o texto 'A Máquina do mundo', de Carlos Drummond de Andrade], como uma ostra dentro de sua concha dourada [= seu quarto - refúgio]. Rememora a chegada de Lia e A. Clara e a 'invasão' das duas à sua privacidade, a amizade das três, apesar das personalidades opostas. Miúda e magra, mostra certa inveja da beleza de Ana Clara, apesar da diferença cultural...
Através da visão de Lorena, conhecemos um pouco mais sobre as duas amigas: Lia de Melo Schultz tem um 'pé' baiano, da mãe Diú [D. Dionísia] e outro berlinense, do pai seu Pô [Herr Paul, ex-oficial nazista]. Herdou do pai o vigor germânico; da mãe, as 'proporções gloriosas e a cabeleira de sol negro' e o açúcar da voz. É uma 'mulher-hino', enquanto Lorena vê-se como uma civilizada, requintada 'balada medieval' [ou 'Magnólia desmaiada', para os colegas da Faculdade de Direito].
Ana Clara 'arrombou' a privacidade de Lorena, obrigando-a a verdadeiros exercícios de caridade cristã: mexe em tudo, nos livros, nos objetos pessoais. Tem olhos verdes, é modelo, linda, mas 'de cuca embrulhada', deprimida e deprimente, juntadíssima, afetadíssima, mentirosíssima - 'ni ange ni bête' - [nem anjo, nem demônio]. Envolvida com sexo e drogas. Enquanto lancha ao sol, Lorena recorda o aborto de Aninha, resgatando a fábula da formiga e da cigarra [inconsciente, bagunceira, irresponsável], com quem compara a amiga.
Recebe carta de Remo e pensa na morte de Rômulo. Filosofa sobre o lado omisso das relações humanas. Sonha em casar-se com M.N., pois sente-se frágil, insegura, precisando de um homem em tempo integral.
Ao voltar para o quarto, pensa no colega Fabrízio, na noite chuvosa em que ele veio estudar mas preferiu envolvê-la nos braços, ameaçando sua virgindade; na falta de luz e subsequente chegada de Lia, estragando o momento mágico com suas alpargatas molhadas e suas pesquisas sobre a vida das prostitutas, sua obsessão por Miguel. Lia sai, mas chega Ana Clara, e 'se instala'. Fim da noite para Fabrízio e Lorena.
No dia seguinte, conheceu o Dr. M.N. na sua Faculdade e ganhou carona. Passa a viver aguardando seu telefonema, fantasiando um amor edipiano.
'Quatro'
Max delira na cama. Gosta de Chopin, de Renoir. Conversa com a Coelha [A. Clara] sobre a riqueza passada, as viagens. Ana compara os diferentes níveis de artistas abstratos e reclama de estar lúcida - teria tomado aspirina? Lembra o passado de miséria e sonha com o futuro promissor como psicóloga de ricaços - 'Nessa cidade as pessoas não se preocupam mais com nome, mas com o saco de ouro' [de que adianta o nome Vaz Leme de Lorena, descendente de bandeirantes?]. Quer esquecer a mãe, os amantes, Jorge, Aldo, Sérgio... e o suicídio com formicida. Lembra-se da amiga Adriana, feia e vesga, mas com casa na praia, onde A. Clara tentou lavar a memória do passado num banho de mar.
Max desperta e os dois deliram juntos. Ela está grávida e quer abortar. Ele deseja o filho, cuja voz diz ter ouvido. Vão ficar ricos e fazer cruzeiros pelo mundo. Ela é a gata borralheira, que tem encontro marcado com o noivo, que já deve estar inquieto com o atraso.
'Cinco'
Lorena aguarda o telefonema de M.N., como sempre. Pensa em arte, em literatura [Dante, Beatriz] , em música [jazz], em cheiros [incenso]; em morte [Rômulo]; na mãe e no carro [teme que Lia seja metralhada dentro dele]. Gostaria de poder sair de moto com Fabrízio, um cinema, um jantar... mas acha que ele deve estar na faculdade, incitando a greve e namorando uma poetazinha que resolveu seduzi-lo.
Recebe a visita da irmã Bula e desconfia que esta é a autora das cartas anônimas, que falam coisas horríveis sobre as meninas e as freiras, para Madre Alix, a superiora. Enquanto serve licor e biscoito para a freira, relembra a morte de Rômulo, as manchetes nos jornais; pensa em Lia, em Simone de Beauvoir [escritora francesa], em segundo e terceiro sexos, em M.N., em Che Guevara, em morrer e renascer [segundo S. Marcos, 'é necessário nascer de novo']. Recupera a teoria da amiga 'terrorista' sobre a perda de pureza do baiano e do índio, e cita Gonçalves Dias.
Coloca um Noturno de Chopin e serve constantemente vinho à freirinha. Quando tampa a garrafa, pensa na ferida de Rômulo, na fuga de Remo. Despede-se da Irmã Bula e de sua velhice sem sentido.
'Seis'
Na sala imunda e mal iluminada onde montaram o 'aparelho', Lia ['Rosa de Luxemburgo'] e Pedro começam a separar material para o jornal. Conversam sobre experiências homossexuais; Jango; o nazismo; conceito de santidade; sobre Che Guevara; Martin Luther King [líder negro americano], engajamento político-social, atuação da Igreja progressista, casamento de padres, amor... Sai para uma operação noturna com o Bugre, que lhe conta sobre a próxima deportação de Miguel para a Argélia. De volta ao pensionato, feliz, conversa com Madre Alix: fala de seu amor pela família, do passado com saudade, do presente [fases da vida!...]; de A. Clara, Max e seu envolvimento com drogas; na sua pretensa vocação para escritora; na desilusão com Miguel [muito cerebral] e Lorena [muito sofisticada].
Madre Alix quer ajudá-las, mas sente-se impotente e teme por seu futuro. Sugere uma epígrafe para o livro de Lia e que serve para a vida das duas: 'Sai da tua terra e da tua parentela e da casa de teu pai e vem para a terra que eu te mostrarei'[Gênesis].
'Sete'
Irmã Clotilde leva frutas para Lorena, que se exercita na bicicleta. Falam sobre as duas Santas Teresas; sobre Tolstói; sobre homossexualismo [comenta-se no pensionato que I. Clotilde é lésbica]; sobre beleza, ideais, filosofias de vida. A freira vai lavar as mãos e volta criticando a cor, a saúde e a alimentação das três amigas. Lorena anseia por beleza e um telefonema... Quer ficar só, mas a freira se demora na visita e no exame do quarto, dos animais, dos livros da moça. Esta lê um pedaço de um livro de Direito, cita frases em latim, enquanto pensa sobre o lado oculto das pessoas: a vida é um jogo de espelhos, e Lorena tem sede de autenticidade...
Lia chega, a freira se vai. Devolve a chave do carro, conta sobre a viagem à Argélia, brinca de entrevistar Lorena [os assuntos de sempre: virgindade, casamento, M.N., Fabrízio, Pedro] e diz que esta é edipiana. Ambas mostram-se preocupadas com a gravidez de Ana 'Turva' e sua dependência. Divertem-se no jardim e despedem-se no portão. Lia pede roupas para os 'revolucionários'.
Lorena fica pensando na iniciação sexual das amigas e imagina como será sua 'primeira vez'[M.N. é ginecologista, um 'gentleman'].
'Oito'
Ana Clara e Max acordam e conversam: ele e Lorena são 'aristocratas', têm álbum de retratos... Os de Lorena estão na garagem do pensionato. Criticam o amante jovem de 'mãezinha', Mieux. Max vai até a geladeira, come e volta a dormir. Ana pensa na desculpa que vai inventar para o noivo aceitar seus sumiços. Arruma-se e sai. Chove. São quase 11 h da noite. Não consegue táxi e aceita carona de um industrial em um Mercedes. Foge dele e refugia-se em um bar, onde encontra um velhote estranho que a convida para seu apartamento. Confundindo-o com 'um pai' que nunca teve, segue-o. Apartamento de boêmio - retratos na parede, vitrola de corda, discos de tangos. Ana deita-se na cama e dorme, enquanto ele lê para ela textos sobre Napoleão, Rodolfo Valentino e tem orgasmo. Diz que o platonismo amoroso é a forma mais sutil e temível da paixão infinita e insaciável.
'Nove'
Na banheira, Lorena filosofa sobre 'ser' ou 'estar' no mundo - na desintegração do ser humano na cidade grande, no papel do filósofo, do advogado, do médico, do psiquiatra. Sente todos os sintomas de todas as doenças mentais, apesar de charmosa e inteligente. Lembra-se da fazenda, das procissões em que se vestia de anjo. Rememora o primeiro encontro com M.N. e imagina as reações de mãezinha quando lhe contar sobre ele. Sai do banho emocionada e veste um robe. Chega o colega Guga, que lhe conta ter abandonado a família, a escola e estar vivendo em um porão, numa comunidade. Escandalizada com sua sujeira, Lorena corta-lhe as unhas, alerta-o sobre promiscuidade e lê para ele uma carta de M.N. Guga se excita e tenta amá-la. Ela quase cede, mas reage e ele se vai.
Chega Lia. Conversam sobre filosofia, Lacan, auto-identificação, transferência de afetos. Lia quer provar que M.N. está mais para pai que para namorado, mas Lorena não admite. Falam sobre o telefonema de Herr Pô e da promessa de ajuda em dinheiro para a viagem. Lorena entrega a Lia um cheque em branco e pede-lhe para usar uma cruz na corrente, enquanto filosofa sobre Deus, religião, fé. Lia sai rindo. Lorena faz caretas.
'Dez'
Lia pega carona com o motorista de mãezinha de Lorena e vai visitá-la. No caminho, consegue fundir a cabeça do senhor com seu discurso sobre família e liberdade. Recebida no hall pelo mordomo, fuma, examina os objetos e tapetes luxuosos, enquanto imagina sua viagem, a desunião da esquerda; vê-se na Argélia escrevendo seu diário e exaltando a Pátria.
Mãezinha chora, na cama, a morte do psiquiatra Dr. Francis. Desajeitada, Lia tenta consolá-la e ouve suas lamúrias sobre a diferença de idade entre ela e Mieux, a impossibilidade de acompanhá-lo em seus programas, a dificuldade em aceitar a velhice e a morte. Lia lembra-se de sua família [tão equilibrada!] com saudade e amor.
Mãezinha pergunta sobre os namoros de Lorena e Lia [acha-a masculinizada] e quer trazer a filha de volta a casa. Conta uma versão totalmente diferente sobre a morte de Rômulo [falência cardíaca, ainda bebê]. Lia sente-se nauseada e pensa em ver o álbum de fotos na garagem: acha que mãezinha está escamoteando a tragédia por autodefesa. Ganha roupas e mala para a viagem.
'Onze'
Tarde da noite. Ana Clara chega transtornada ao quarto de Lorena, que está estudando para a prova no dia seguinte [a greve terminara]. Entra arrastada, gritando de dor no peito e imunda. Lorena coloca-a na banheira - seu corpo está cheio de nódoas roxas e sofre alucinações com formigas, baratas, Deus e Max. Pede uísque e a bolsa. Delira. Lorena pensa no abismo entre o ser e o estar, num futuro feliz no campo, fora de sua casca. As novelas da vizinhança encobrem os ruídos e finalmente A. Clara adormece. Lorena toma chá.
Finalmente Lia chega para preparar as malas [a viagem será na manhã seguinte] e Lorena vai até seu quarto. Conversam muito - sabem que estão se despedindo - e Lia conta-lhe que Guga virá procurá-la. Não vêem futuro na relação com M.N., que jamais abandonará a família, pois a 'dor do remorso dói mais que a dor física'[Tolstói].
Ao voltar para o quarto, Lorena tem um choque: A. Clara está morta.
'Doze'
Lia corre aos acenos da amiga. Ao entrar, encontra Lorena massageando o peito de A. Clara, tentando revivê-la, enquanto reza. Lia pensa em chamar o pronto-socorro, em acordar todo mundo, em que poderia ter feito mais pela amiga, além dos 'discursos'. A bolsa de A. Clara está aberta: talvez dali ela tirara a própria morte. Lorena tem ideias e age: encomenda o corpo, reza em latim, veste e pinta A. Clara como se esta fosse a uma festa. Elimina todas as pistas comprometedoras para Aninha e Max, além das freiras do pensionato. As duas amigas carregam A. Clara através da noite providencialmente nebulosa e abandonam o corpo em um banco em uma linda praça do bairro.
Voltam para o pensionato e separam-se: cada uma vai viver a própria vida. Lia no exílio. Lorena de volta para a casa de mãezinha, deixando sua concha para a futura hóspede, que vem do Pará.
III- Análise dos elementos constitutivos da narrativa.
Ação
A ação do livro é prevalentemente interiorizada. Quase nada acontece na realidade exterior; a vidinha pacata e rotineira no pensionato, as conversas intermináveis, os estudos, as visitas das personagens ao redor do quarto de Lorena - centro daquele microcosmo -, poucos momentos na faculdade e no 'aparelho'; as atitudes contraditórias de Ana Clara e sua morte; a solução dada pelas amigas para se livrarem de um cadáver comprometedor.
Tudo se passa no âmbito da memória, enquanto as meninas resolvem o passado e evocam suas experiências em busca de autoconhecimento, de solução para seus traumas e conflitos interiores, para a exorcização de seus 'fantasmas'.
Personagens
Lorena Vaz Leme, filha de fazendeiros, culta, fina, aristocrática, descende de bandeirantes. É aluna na Faculdade de Direito e bastante estudiosa: cita com frequência passagens da Bíblia, frases em latim, em francês, em espanhol, de filósofos variados, escritores e músicos. Demonstra cultura e educação esmerada, onde se fundem harmoniosamente o erudito e o popular. Assistiu impotente à derrocada da própria família e evoca frequentemente esse passado, onde contrapõe os momentos felizes da infância, na fazenda, à morte acidental do irmão e a subsequente desagregação do núcleo familiar - a fazenda vendida, o pai internado em sanatório, o irmão traumatizado pela culpa, a mãe vivendo de fantasias, terapias e falsas ilusões.
Lorena tenta 'equilibrar-se' fechando-se em uma concha dourada dentro do pensionato de freiras, onde pratica ginástica, faz chá, recebe cartas e presentes do irmão, visitas frequentes de colegas, e de onde ajuda as amigas. Toma sol, lê, filosofa, mas pouco age. Segundo Lia, trata-se de uma burguesa alienada, apesar da bondade e do carinho com que recebe e ajuda a todos.
Mas o mundo insiste em invadir sua privacidade - as amigas, as freiras, Fabrízio, Guga, o amor impossível pelo médico mais velho colocam-na em frequente conflito com o mundo exterior. Procurando viver de sonhos, perde várias oportunidades de realizar-se afetivamente e ser feliz.
No entanto, diante da morte de A. Clara, consegue definir-se e agir positivamente, encontrando, por um lado, solução para o problema imediato; e, de outro, um possível desfecho para sua alienação: voltará para a casa da mãe, acabará por perceber a impossibilidade de um compromisso com M.N. e se abrirá para o amor de Guga, enquanto se resolve a enfrentar o mundo e a deixar sua 'concha' definitivamente.
Lia de Melo Schultz serve como contraponto à 'finesse' de Lorena: veste-se mal, usa alpargatas, não gosta muito de banho, não cuida da aparência. Veio da Bahia para fugir da mãe superprotetora e do pai com um passado misterioso de ex-oficial nazista. Matricula-se no curso de Ciências Sociais [foco de agitações estudantis na década de 60], onde se envolve com um grupo militante da esquerda e apaixona-se por Miguel, que acaba preso.
Sua preocupação consiste em angariar dinheiro e roupas para o 'aparelho', e está sempre discursando contra a alienação da burguesia, das amigas, e a pobreza do Nordeste. Seu equilíbrio repousa sobre dois referenciais: em seu engajamento político [doação de amor aos amigos e à liberdade da Pátria] e na segurança que encontra no amor de Miguel e no apoio da família, que, mesmo à distância, protege-a e dispõe-se a ajudá-la em sua fuga para o exterior. Escolhe seu próprio caminho e resolve-se bem.
Ana Clara Conceição apresenta o temperamento mais problemático e a personalidade mais inconsistente das três, apesar do fascínio que a força de suas evocações exerce sobre o leitor, as amigas e Madre Alix, principalmente.
Filha de pai desconhecido, amargou uma infância carente, junto a uma mãe prostituída e constantemente machucada pelos sucessivos companheiros, um dos quais a induz ao suicídio pela ingestão de formicida. Ana foi seduzida por um dentista, que abusa sexualmente da mãe e da filha. Traumatizada, não consegue encontrar prazer nos seus relacionamentos amorosos. Permanece quase o livro todo na cama com o namorado Max, traficante que a viciou em drogas e, embora conversem muito, seu discurso aparece truncado - amam-se, mas não conseguem ser felizes.
Sob o efeito das drogas, suas evocações são basicamente sinestésicas: ruídos [o roque-roque dos ratos e o barulho das baratas, nas construções], cheiros [do consultório do dentista, da bebida, do mar, do corpo de Max...], sensações variadas de frio e de calor entrecruzam-se enquanto ela desnuda seus traumas sem qualquer pudor e, fugindo à realidade, adia todas as soluções para 'o ano que vem'.
Só que o peso da memória é mais forte: nem a aspirina; nem a ilusão de um noivo rico; nem a probabilidade da plástica restauradora da virgindade; nem a perspectiva de ascensão social através da Faculdade de Psicologia, da carreira de modelo, do dinheiro que conseguirá na clínica para a burguesia; nem o amor e os conselhos de Madre Alix e das amigas conseguem salvá-la. Seu fim é trágico: morre de overdose no quarto de Lorena, e, vestida e enfeitada, cumpre seu destino num banco de praça, sem prejudicar aquelas pessoas que conseguiram dar-lhe um pouco de afeto, mas não a paz de que tanto necessitava.
Tempo
Subjaz à narrativa uma sequência cronológica pouco marcada de alguns dias ou poucas semanas: o tempo é voluntariamente vago e difícil de precisar. O que prevalece é o tempo psicológico, pois tudo acontece através do entrecruzar da memória, da evocação do passado, da mistura com algumas ações no presente.
Alguns fatos permitem a localização da obra no final dos anos 60, pois evocam as agitações sociais, as greves universitárias, a prisão e a tortura de militantes políticos sob o enrijecimento da ditadura militar, o crescimento agressivo da megalópole que tritura o jovem e esmaga sua individualidade, alienando-o, censurando-o e dificultando-lhe a busca de caminhos.
Passado e presente fundem-se de modo inextricável, e nos traumas da memória encontram-se as explicações para os problemas existenciais das três meninas - símbolos de toda uma geração massacrada e alienada por forças do passado e das circunstâncias.
Espaço
Oprimidas pela cidade grande e sua violência, as três meninas refugiam-se no Pensionato N. Senhora de Fátima, na região central de São Paulo. O quarto-concha de Lorena constitui-se no refúgio para onde as pessoas convergem em busca de conforto, de carinho, de segurança, de afeto e compreensão - um tipo de oásis dentro de um mundo desorganizado, caótico e extremamente ameaçador, onde 'Deus vomita os mortos'.
Foco Narrativo
O foco narrativo em primeira pessoa é manipulado pela Autora de forma magistralmente cambiante: ele se desloca constantemente [e inesperadamente!] para o fluxo de consciência das três amigas, que se entrevistam, que se apresentam umas às outras e ao leitor, que refletem continuamente sobre si mesmas e umas sobre as outras, arrastando-nos nessas frequentes invasões à privacidade de A. Clara, Lorena e Lião, que se vão desnudando paulatinamente diante de nós.
Existe uma dificuldade inicial para a leitura até a identificação do estilo peculiar de cada personagem, pois cada uma delas se exprime dentro de seu 'dialeto' coloquial - o discurso mais elaborado e culto de Lorena, o regionalismo politicamente engajado de Lião e o pensamento confuso e truncado de Ana 'Turva'.
Superada essa dificuldade, o leitor mergulha de corpo e alma no universo fantástico dessas três meninas encantadoras, representantes autênticas daquele que foi um dos períodos mais importantes e difíceis para a emancipação da mulher, para a liberdade de pensamento e para a realização individual dentro de um universo politicamente conturbado.
O romance As Meninas oferece-nos, de um lado, um painel saboroso das vivências de três pessoas em busca de si mesmas; de outro, uma amostra dos problemas cruciais que agitaram a juventude durante um dos períodos mais conturbados da história do Brasil, que Lygia Fagundes Telles teve a ousadia e a coragem de denunciar.