A escravidão islâmica
Com a expansão islâmica a história da África ganhou novos rumos. Desde os fins do século VIII, os árabes, partindo da região do Golfo Pérsico e da Arábia, disseminaram o islamismo pela força da palavra, dos acordos comerciais e, principalmente, das armas.
Eram as guerras santas, as jihad, destinadas a islamizar populações, converter líderes políticos e escravizar os “infiéis”, ou seja, quem se recusasse a professar a fé em Alá. Um dos primeiros povos a se converter ao islamismo, na África do Norte, foi o povo berbere. As cáfilas, como ficaram conhecidas as grandes caravanas que percorriam o Saara, eram formadas principalmente por berberes islamizados. Foi assim, seguindo a trilha desses comerciantes, que o islamismo ganhou adeptos na região sudanesa, na savana africana ao sul do deserto do Saara.
A adoção do camelo como principal meio de transporte foi decisiva na expansão do islamismo na África, porque possibilitou aos berberes percorrer grandes distâncias e suportar as duras condições da vida no deserto. As caravanas pareciam cidades em marcha. Guias, soldados, mercadores e centenas de camelos e escravos percorriam as trilhas à mercê da pouca água disponível nos poços, do clima ameno dos oásis e da resistência dos animais.
Transitar no deserto era, além de exaustivo, uma peripécia perigosa: corria-se o risco de enfrentar tempestades de areia, de se perder entre dunas ou de sofrer ataques de assaltantes. Eram longas viagens por rotas que, no século IX, ligavam Marrocos, Argélia, Líbia, Tunísia e o Egito às margens dos rios Senegal e Níger, ao sul da Mauritânia e ao lago Chade. Já na metade daquele século os escravos eram os principais produtos dos caravaneiros do Saara, que por ali transportaram cerca de 300 mil pessoas.
As cáfilas rumavam do Norte da África para as savanas sudanesas carregadas de espadas, tecidos, cavalos, cobre, contas de vidro e pedra, conchas, perfumes e, principalmente, sal. No retorno, depois de meses, traziam ouro, peles, marfim e, cada vez mais, escravos. Calcula-se que, entre 650 e 1800, esse tráfico transaariano de escravos vitimou cerca de 7 milhões de pessoas, sendo que 20 por cento delas morreram no deserto.
Durante a viagem, os caravaneiros muçulmanos acampavam nas fronteiras das cidades ou aldeias sudanesas e não deixavam de cumprir os seus rituais religiosos. Rezavam cinco vezes ao dia, mas também adivinhavam chuva, confeccionavam amuletos, previam o futuro, administravam remédios aos doentes locais e, é claro, faziam negócios. Tudo sempre de acordo com os preceitos islâmicos. Nessa interação, o Islã dos mercadores ia encontrando ora uma maior receptividade, ora a firme resistência das populações sudanesas adeptas de crenças tradicionais. Em muitos lugares a fé em Alá e o culto aos ancestrais conviveram, noutros a conversão ficou restrita ao soberano e à aristocracia, enquanto as pessoas comuns continuavam a professar as crenças herdadas dos antepassados. Mas também se viu a conversão de populações inteiras, fosse para escapar do risco do cativeiro, já que apenas os infiéis podiam ser escravizados, fosse por sincera convicção religiosa.
O Corão não condenava o cativeiro. Para os seguidores do profeta Maomé, a escravização era uma espécie de missão religiosa. O infiel, ao ser escravizado, “ganhava” a oportunidade da conversão e, depois de devidamente instruído nos preceitos islâmicos, tinha direito a voltar a ser livre. Entretanto, não bastava se converter para ter direito a alforria. Havia razões bem mais comerciais e bem menos altruístas a justificar o crescimento do número de escravos no mundo muçulmano. Primeiro, porque uma vez escravizado o indivíduo nem sempre dispunha de tempo e condições para ser educado de acordo com as leis islâmicas, e segundo, porque o trabalhador escravo era fundamental para a viabilidade do comércio dos mercadores muçulmanos.
A intensificação do comércio de longa distância exigia o aumento do número de cativos. Além de produto de troca, o escravo era o carregador nas exaustivas viagens. Estava a seu encargo o transporte das barras de sal, dos fardos de tecidos, dos cestos de tâmaras, das armas, dos objetos de cobre. Na outra ponta das rotas comerciais a procura por escravos só aumentava. Quanto mais escravos eram capturados outros tantos eram necessários para preencher várias ocupações no mundo árabe. Podiam ser concubinas, agricultores, artesãos, funcionários encarregados da burocracia, domésticas, tecelões, ceramistas. Mas era principalmente como soldados que os cativos passavam a ser indispensáveis. A conquista de territórios e o domínio de líderes locais dispostos a interpretar à sua maneira a lei islâmica, requeriam mais e mais soldados. Assim, à medida que aumentavam os territórios submetidos aos muçulmanos, crescia a necessidade de controlálos, bem como de realizar novas conquistas.
Todo o mundo árabe foi se revelando um bom mercado para os cativos trazidos não só da África, mas também da Índia, China, Sudeste da Ásia e Europa Ocidental. Viam-se, por isso, pessoas capturadas em diversos lugares nos mercados de escravos do mundo muçulmano. Mas foi a África negra quem mais abasteceu os mercados de escravos, principalmente depois da ocupação do Egito e do Norte da África pelos árabes. Ainda no século IX, o califado de Bagdá chegou a contar com 45 mil escravos negros trazidos pelos comerciantes berberes. A partir do século X, o número de escravos provenientes da África subsaariana excedia em muito o de turcos e eslavos. E essa tendência só se acentuou ao longo do tempo, tanto que no século XVIII aproximadamente 715 mil pessoas foram capturadas na África negra e escravizadas no Egito, Líbia, Tunísia, Argélia e Marrocos. Esse tráfico voraz de gente de cor preta explica a presença de negros nas populações árabes.
Desse modo, a escravidão doméstica africana foi dando lugar à escravização em larga escala. A partir do século XV, com a presença européia na costa da África, esse processo ganhou dimensão intercontinental e fez da África a principal região exportadora de mão-de-obra do mundo moderno. Todas as grandes nações européias de então se envolveram no tráfico e disputaram acirradamente sua fatia nesse lucrativo negócio. Holandeses, franceses, ingleses, espanhóis e, principalmente, portugueses lançaram- se na conquista dos mercados africanos.
Referências
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